Saturday, December 03, 2005

 

O naufrágio da fragata "Stª Escolástica" no banco de Stº António e o seu raro astrolábio

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Do Fundo do Mar
By Elísio Gomes Filho
December 03, 2005


Foto: Denis Albanese.

No dia 27 de novembro de 1700, depois de montar o famigerado Banco de Santo Antônio (banco de areia situado nas proximidades da barra da Baía de Todos os Santos, Salvador), a fragata Santa Escolástica naufraga.

O navio encontrava-se sob o comando do capitão-de-mar-e-guerra João de Maia da Gama, e se destinava a socorrer Mombaça, que desde o dia 13 de dezembro de 1698 havia sido tomada pelos árabes. Ela ia em conserva com a nau Nossa Senhora de Bitancor, comandada pelo capitão-de-mar-e-guerra Antônio de Saldanha. Sob ordem régia da metrópole, a missão militar foi organizada pelo governador e capitão-general do Estado do Brasil, Dom João de Lancastre, que fez embarcar em ambos os navios, soldados e vários nobres voluntários provenientes da Bahia. Na própria nau Nossa Senhora de Bitancor, encontrava-se o capitão-tenente Dom Rodrigo de Lancastre, ou seja, o filho daquele governador. No naufrágio da Santa Escolástica, pereceu grande parte de seus ocupantes, tal foi à rapidez do afundamento.

O sítio arqueológico da Santa Escolástica, numa profundidade de 21 metros, fica a oeste do Banco de Santo Antônio. Sua posição geográfica aproximada: latitude 13° 03’S e longitude 38° 33’W. A título de curiosidade, o sítio que foi revelado no verão de 1979/80 pela SALVANAV foi denominado “do canhão em pé” em virtude de ter sido identificado em meio aos destroços, uma peça de artilharia que ficava na posição vertical, ou seja, a sua boca apontava em direção da superfície.

A descoberta de um astrolábio náutico
No verão de 1982/83, quando a SALVANAV voltou a explorar o sítio arqueológico da fragata Santa Escolástica, entre as peças recolhidas, encontrava-se um astrolábio(1), que foi localizado sob uma camada de areia de um 1 metro de espessura, distando cerca de 3 metros do referido “canhão em pé”. O bom estado do instrumento náutico veio permitir rápida limpeza e restauração, executada pelo já falecido modelista naval, Sr. Kelvim de Palmer Rothier Duarte. O ano de sua fabricação datava em 1624, e foi feito por Francisco de Goes, que segundo estudo do historiador naval Max Justo Guedes, foi o mesmo fabricante de um astrolábio que se encontra em Florença, no Museo di Storia della Scienza, cuja ano de fabricação é 1608.

Salvara-se apenas o capitão João da Maia
Com o fito de conhecermos alguns pormenores relativos ao naufrágio da Santa Escolástica, retiramos dos “manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval respeitantes ao Brasil”, o que se segue:

Carta de D. João de Lancastre, governador e capitão-geral do Brasil, para el-Rei, acerca do socorro enviado daquela Baía à Índia. Tudo o que S. Majestade lhe ordenara por carta de 1º de abril do ano anterior, vindo na fragata Nossa Senhora do Bom Sucesso, sobre o socorro da Índia, o cumprira formalmente. Tinham partido da Baía a nau Nossa Senhora de Bitancor e a fragata Santa Escolástica a 27 de novembro, a monção mais oportuna para ir a Moçambique e daí a Goa em tempo conveniente, como el-Rei o poderia ver pelo termo incluso dos pilotos, mestres e contramestres da carreira da Índia. Quanto à ‘bondade de apresto’ de ambas as naus, tinham ficado satisfeitos os seus capitães e mais oficiais, como o mostrava também o termo incluso que tinham feito. Dava seguidamente uma exposição pormenorizada de toda a defesa e guarnição das embarcações, das quais todos tinham confessado que nunca tão luzido socorro, nem de melhor gente, partira para a Índia. Levavam os mantimentos e sobressalentes necessários, e ainda com que fazer 14 ‘carretas’ que faltavam na fortaleza de Moçambique. Tivera de empregar toda a sua boa vontade e zelo para conseguir arranjar o que mandar, pois além da esterilidade do ano, tinha saído a frota havia poucos meses com 30 navios, o que tornava ainda os mantimentos e fornecimentos mais escassos. A sua habilidade fizera ainda com que houvesse sobras, sem necessidade de pedir dinheiro emprestado ou a juros. Despedidas as naus, acompanhara-as até a barra e então se recolhera com outros ministros, oficiais de guerra, o provedor-mor e mais pessoas, à fortaleza de Santo Antônio, para ainda as ver, ficando todos muito alegres quando constataram que já tinham passado os baixos e estavam livres deles. Então se dirigira a Nossa Senhora da Graça, a dar-lhe louvores pela mercê que lhe havia feito. Quando estava fazendo a sua oração, lhe vieram dizer que a fragata Santa Escolástica se voltara, com uma rajada, e fora a pique. Ninguém conseguira entender a verdadeira causa de tal desgraça, nem mesmo o seu capitão de mar-e-guerra João da Maia Gama. Tinha assistido com o provedor-mor e o dito capitão a querena da embarcação, tendo custado muito a fazer-lhe mostrar a quilha. Por todos era considerada muito segura, não lhe faltando nada e indo nela muito bons oficiais, práticos na carreira da Índia. Este acontecimento só se podia pois explicar por uma manifestação da vontade divina, que revelara não querer que fossem duas naus à Índia naquela ocasião. Esperava que a nau grande Nossa Senhora de Bitancor triunfasse, executando o que deviam ter feito as duas juntas, tanto mais que nela seguia uma força de socorro que, entre soldados e mais tripulação, comportava 513 praças ‘e os melhores cabos, e a mais luzida, e valorosa gente’. Se estivesse na sua mão evitar aquele acontecimento, como tinha estado a preparar o socorro, certamente que se não teria dado. Mandara recentemente procurar embarcações e também parecera misterioso não haver naquela ocasião nenhuma na praia. Enviara então aviso ao provedor-mor para que mandasse as embarcações que achasse, e tendo-se feito as diligências possíveis, salvara-se apenas o capitão de mar-e-guerra João da Maia, o capitão da guarnição João Garcês e nenhum mais dos ‘mandadores’. Da mais gente tinham-se salvo 70 ou 80 pessoas. Mandara tirar devassa daquele naufrágio pelo ouvidor geral do crime, o desembargador Miguel de Siqueira Castelo Branco. Remetia-a a el-Rei, não se tendo encontrado motivo para proceder contra pessoa alguma. Também não procedera contra o capitão João da Maia, por não ter tido qualquer culpa naquele sucesso. Baía, 14 de janeiro de 1701 ”.

A nau Nossa Senhora de Bitancor, despedaçada
Com o naufrágio da Santa Escolástica, a nau nossa Senhora de Bitancor prosseguiu sozinha a viagem e alcançou Goa, em 12 de outubro de 1701, havendo perdido muitos homens na longa travessia. Pouco depois, quando se preparava para socorrer Mombaça, em companhia da nau Nossa Senhora do Vale e da fragata Nossa Senhora da Boa Sentença e São João dos Bem Casados, estando os três navios fundeados na barra de Goa, foram atingidos por um ciclone, na noite de 9 para 10 de dezembro, fazendo com que a Nossa Senhora de Bitancor fosse destruída, salvando-se apenas o capitão-mor Costa Ataíde, que nela estava embarcado, enquanto os dois outros, partidas as amarras, foram dar na costa.

Obra bibliográfica consultada: Navigator, n° 19, SDGM, Rio de Janeiro, 1983.


(1) O astrolábio recuperado do sítio arqueológico da fragata Santa Escolástica
Descrição física e técnica



Esse astrolábio náutico em bronze, que hoje se encontra em exposição no Museu da Marinha no Rio de Janeiro, tem 169.0 mm de diâmetro, espessura do limbo na parte superior de 19.5 mm e 21.0 mm na base e largura de 16.0 mm. O peso é de 2.950 gramas. A armadura é de três raios (tendo largura média, nas partes retas, de 14.5 mm), que se alargam na ligação com o limbo, formando arabescos; o raio vertical tem gravado, próximo à junção, uma estrela de quatro pontas e os horizontais apresentam, ali, duas estrelas cada, idênticas à primeira. O semicírculo superior é graduado zenitalmente 90-0-90. O setor inferior, destinado a lastrar o aparelho, tem a forma de semicírculo. A alidade (medeclina) apresenta-se gasta nas extremidades, medindo atualmente 15.0 mm. As pínulas são retangulares (39.0 X 50.0 4.0 mm, esta última medida sendo a espessura média), eqüidistantes do centro e dele afastadas 26.0 mm. A data de fabricação, 1624, está gravada no setor inferior; cercam-na quatro estrelas, de quatro pontas, inscritas em dois pares de circunferências concêntricas, a exterior com 40.0 mm de diâmetro. Um pouco abaixo, quase na extremidade inferior do diâmetro vertical, está o nome do fabricante GOIS. O conjunto é suspenso por um anel. Este é preso ao limbo por um sistema móvel de fixação munido de dois eixos, que se cruzam perpendicularmente e permitem oscilações, mas impedem giros.

Além de Francisco de Goes, são conhecidos como fabricantes de instrumentos náuticos, Agostinho de Goes Raposo. O outro Goes do mesmo imprescindível ofício foi João de Goes, filho único de Agostinho e que em 1648 foi dispensado do serviço militar porque aprendia com seu pai o referido ofício. É ainda mencionado, documentalmente, um sobrinho de João de Goes como possível aprendiz do importante ofício. Mas dele desconhece-se o nome e, mesmo, se chegou a aprendê-lo. Acredita-se que Francisco de Goes - o fabricante do astrolábio encontrado no sítio arqueológico da fragata Santa Escolástica - foi iniciador de uma família de fabricantes de instrumentos náuticos, que assim deve ter conquistado grande prestígio no meio náutico de Portugal, desde o final do século XVI até a segunda metade do século XVII, período em que os astrolábios portugueses alcançaram sua máxima perfeição.

O Museu da Marinha, ainda possui mais dois astrolábios. Ambos foram retirados do sítio arqueológico do galeão Sacramento e são assinados pelo fabricante Agostinho de Goes. Esses dois instrumentos náuticos podem ser enquadrados, segundo classificação que fez David Waters, em seu trabalho The sea - or mariner’s astrolabe (Coimbra, Junta de Investigações do Ultramar, 1966), no tipo lastrado na base.

Obra bibliográfica consultada: Navigator, n° 19, SDGM, Rio de Janeiro, 1983.

Elísio Gomes Filho é historiador e responsável pelo site www.nomar.com.br (Historiadores do Mar).


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www.dofundodomar.blogspot.com

Comments:
já vi k me vou deliciar com este blog...adoro história, adoro este tipo de curiosidades...adoro segredos perdidos no tempo... :)
 
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