Sunday, January 01, 2006

 

O naufrágio mais antigo do Brasil: seria um enigma da história ou um elemento de uma ficção?

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Do fundo do Mar
By Elísio Gomes Filho
January 01, 2006

A nau capitânia da Lettera

Nota do autor:
Em vez de darmos uma resposta direta e positiva, se as informações sobre o naufrágio que seria o mais antigo ocorrido na costa brasileira contidas na controvertida Lettera são procedentes, tentaremos armar uma estratégia de sedução, uma vez que nossa interpretação vai representar um ponto de vista singular. E assim em lugar de logo saciarmos a curiosidade dos leitores, só pretendemos aumentá-la. Ora, a partir daqui, em diante existe a possibilidade de participarmos de uma experimentação psicológica, ou seja, de compartilharmos de um banquete intelectual, quando nos dispusermos a constatar que não pode haver história do passado tal como efetivamente ocorreu; e sim, de haver uma série de interpretações históricas diferentes, sendo que nenhuma delas é definitiva e compatíveis. No entanto, os historiadores não vêem qualquer outra interpretação que se adapte tão bem aos fatos que pesquisou, como a sua própria, de modo que deixemos a ingenuidade de lado para afirmar que qualquer conjunto definitivo de registros venha a ser alguma vez interpretado de um só modo. Contudo, todos os historiadores sabem que as suas interpretações têm que ser atendidas por meios racionais e lícitos, para não se produzir às chamadas interpretações historicistas, cujos formuladores então não passam de meros contempladores da história factual, uma vez que não reconhecem que são eles quem deve escolher e ordenar os fatos da história. Portanto estamos nos dispondo a voltar nossos olhares para exemplos contrários a respeito da problemática vespuciana e arquitetar uma interpretação inevitável. Conseqüentemente, daremos ensejo ao surgimento de um novo ponto de vista, mas levamos em conta, a necessidade de ter sentido crítico, ou melhor, dizendo, evitar na medida do possível, os desvios não críticos na exposição dos fatos que se encontram a nossa disposição, os quais - se tratando do legado vespuciano - são severamente limitados.

De modo que nos ancoramos na premissa de que não há princípios absolutos (principalmente no campo do estudo da História) onde cada investigador, por mais sistemático e rigoroso que possa ser seu pensamento, é essencialmente falível, principalmente no campo da interpretação histórica.

Toda pesquisa documentária tem um resíduo de inopinado e, por conseguinte, de risco

Todos sabemos que é tão difícil como ingrato lidar com a imensidão de vestígios dos fatos humanos que são mais complexos que quaisquer outros, pois eles não dizem tudo, não podem dizer tudo, mesmo quando os lemos escrupulosamente e formulamos as perguntas certas. Portanto poucas ciências - como a História - são obrigadas a usar, simultaneamente, tantas ferramentas auxiliares e distintas. Ora, as chamadas “fontes de história”, apenas registram os fatos que pareceu suficientemente interessante registrar, de modo que às fontes em regra, só contém fatos a que se adaptem a uma teoria preconcebida. De modo que muitas vezes como não se dispõe de mais fatos, não será, via de regra, possível pôr à prova esta ou outra teoria subsequente. Em vista disso, realizamos uma experimentação, ou seja, foi feita uma confrontação das muitas teorias históricas existentes sobre a problemática vespuciana, de um grande número de pesquisadores de muitas categorias, de origem brasileira, portuguesa, uruguaia, argentina, espanhola, italiana, alemã, francesa, inglesa e norte-americana, assim como outros tipos de pontos de vistas alheios que sobre o assunto vários estudiosos já versaram. Tudo não passa de tentativas de se comprovar vários pontos de vistas e a eles vem se juntar mais uma: a nossa interpretação.

De modo que o que iremos explorar será realizado com grandes chances de tanto obtermos sucessos, como revezes, ou seja, podemos obter um considerável progresso, uma vez que a nossa interpretação mesmo que seja qualificada de circular (o que realmente não deixa de ser), foi feita debaixo de uma estratégia, isto é, lançamos mão de um número plausíveis de hipóteses auxiliares, para evitar assim o desmentido dos registros além de ter correlacionado diversos fatos que outras interpretações já haviam correlacionado, o que pode então nos permitir explicar um acontecimento de nosso interesse, ou seja, se realmente houve um naufrágio de uma nau portuguesa no dia 10 de agosto de 1503, nas imediações do arquipélago de Fernando de Noronha. É como afirma o historiador francês Marc Bloch que, há no fundo de (quase) toda pesquisa documentária, um resíduo de inopinado e, por conseguinte, de risco.

Tem mais. Confessamos que nossa interpretação não é inteiramente inédita, mas temos quase certeza que a forma de abordá-la é original, em parte por que o assunto é prenhe de significados.

Vestígios de um passado: os homens das histórias das navegações
Entretanto, não há dúvida de que a tarefa que assumimos levar a frente pode parecer ousada, em vista do dogmatismo que a versão já se revestiu (ou seja, de que o naufrágio de uma nau capitânia, ocorrido em 1503 em Fernando de Noronha é uma verdade histórica comprovada, ou melhor, trata-se de uma afirmativa que tem sido até então tratada como uma das verdades acabadas), não obstante assumimos todos os riscos de nossas possíveis e prováveis lacunas. Consequentemente, em virtude delas, pedaços e pedaços do passado de um mundo esquecido de indivíduos silenciosos não podem ser reconstituídos, mas de qualquer forma se nós conseguíssemos reconstruí-los, não estaríamos isento de cometer erros e inexatidões, já que sempre iremos de beber nos testemunhos históricos (fontes históricas), cuja diversidade é quase infinita, ou seja, só se conhece os fatos históricos por meio do amplo panorama, que eles - os limitados e tirânicos vestígios históricos nos fornecem. Pretendemos também evitar detalhes de erudição que aqui estariam fora de propósito, mas não podemos deixar de esclarecer que entendemos efetivamente por documentos, senão vestígios que o passado deixa cair ao longo de uma estrada geralmente prenhe de enganos quando nos apresenta seus documentos (vestígios) com a aparência da evidência e geralmente apegamo-nos com muito mais fervor ao que os documentos nos deixam entender, sem levarmos em conta, o que eles pretendem a nos dizer, quando na verdade eles encobrem tanto quanto revelam. Do outro lado, os vestígios só começam a falar a partir do momento em que os interrogamos, e que a qualidade das respostas que eles podem nos dar, coincide com a qualidade das questões que nós, historiadores formulamos.
Mas nem por isso, a nossa argumentação foi construída debaixo de conclusões duvidosas, interpretações arriscadas, conjecturas frágeis e nem se trata de impor - como poderá parecer para alguns - uma fórmula definitiva, mas também não pretendemos repetir modelos, pois não é um bom caminho para se tentar pelo menos, compreender através de outros viezes, os vestígios de um passado de relevância para a construção dos primeiros passos de nossa história nacional. Existem aqueles que continuam a se aferrar a umas idéias absoletas, mas existem aqueles que além de criticar a “história tradicional” se lançam sob todos os riscos na inopinada tarefa de modificar modos de apresentação e de escrita do passado, para tentar resolver muitos problemas da história brasileira que permanecem ainda insolúveis, mas os quais correm o grande risco de permanecer eternamente sem respostas.

Mas diga-se e agora, que o exame crítico dos poucos vestígios que conseguiram subsistir das sociedades do passado recuado, permite sentir, um pouco menos friamente o homem que se encontra por detrás de seus vestígios.

A informação em lugar da dissimulação
Mas tem mais. Face à essa perspectiva, nos consideramos um destruidor histórico de ilusões. Estamos convictos de que pertencemos ao rol dos descobridores negativos, os quais geralmente não são bem vindos e vistos, pois de uma forma ou de outra, eles conseguem frustrar as imaginações contemporâneas, pois se deve levar em conta que o gosto pelo mistério está sempre a aliciar a imaginação dos homens, mesmo depois de muitos séculos de racionalismo científico. Todos sabemos que a crença e o culto aos enigmas históricos - alguns dos quais já fazem parte do universo dos mitos - vem de encontro à curiosidade e ao desejo que o homem tem pelo mistério. Portanto, cabe dizer que um descobridor negativo se encontra comprometido com uma relevante missão, uma vez que a história pelo menos no Ocidente, confirma que a grande ameaça ao progresso intelectual, humanístico e científico, não se encontra somente baseado na ignorância, ou seja, na falta de conhecimento que os homens tem sobre variados fatos da história - mas também na ilusão que eles tem sobre uma série de determinados conhecimentos construídos (para não os taxar de dissimulados). Nosso trabalho de pesquisa então passa a ser um combate construtivo, já que o caminho que um descobridor negativo se mostra necessário percorrer, é o de que se deve aprender a refletir sobre o que se encontra atrás de certas afirmativas que são repetidas sucessivamente ao ponto, de se transformarem em verdades acabadas, tal como se afirma - baseado na Lettera de Américo Vespúcio - que em Fernando de Noronha , ocorreu o naufrágio mais antigo do Brasil. É como escreveu o historiador francês Marc Bloch que a nossa civilização terá realizado um grande progresso no dia em que a dissimulação ceder lugar ao gosto pela informação. Mas você pode nos perguntar, que importância pode ter a afirmativa de Marc Bloch para nós? E então podemos assim responder: a carência do conhecimento é outro tipo de fome.

Sem perdermos de vista nosso objetivo, que é o de expor a problemática existente em torno daquele que seria o naufrágio mais antigo da costa brasileira, vamos rapidamente fazer um sumário do contexto onde o acidente de uma nau capitânia relatado na Lettera encontra-se inserido. Composto em parte esse quadro é mais fácil dar uma resposta satisfatória sem manipularmos tanto o passado. E para sermos o mais breve possível, deixaremos de lado outras suposições relativas as nossas reconstruções, que começamos apenas a nos dar conta - uma maneira de pensar, de fazer e escrever a história, submetendo tanto os vestígios, como os estudos que sobre eles foram feitos, a novas interrogações e renovar a sua reinterpretação.

O naufrágio de uma nau capitânia em 1503 no arquipélago de Fernando de Noronha: a hora de por em ordem as versões e os fatos
Como ponto de partida mais razoável e tão menos desgastante seria logo afirmarmos que não há uma solução historiográfica sobre o suposto naufrágio de uma nau relatada pela Lettera na orla do famoso arquipélago brasileiro, já que nos baseamos nos estudos de alguns analistas de que a quarta viagem narrada na respectiva Lettera - a de 1503 - não passa de obra de um forjador, ou seja, tal como a de 1487, a viagem de 1503 tida como vivenciada e narrada por Américo Vespúcio, também se encontra sob a chancela da apocrifia. Aqui e agora, entra em cena o legado de Américo Vespúcio(fazer um link para o texto que se encontra abaixo) - o mais controvertido personagem do período da era das descobertas ultramarinas. Mas como é de praxe e próprio do ser humano, em torno do poder que emana dos enigmas - onde se podem encaixar os vespucianos - gravitam alguns pesquisadores determinados a conjecturar hipóteses verossímeis e inverossímeis, os quais baseados primordialmente no que diz a Lettera - com suas informações fragrantemente não conciliáveis - procuram encontrar uma solução historiográfica para o naufrágio de uma nau capitânia, assim como para os outros vários enigmas criados pelo texto mistificador da quarta viagem (1503) da carta imputada a Vespúcio, a qual tinha sido impressa na Florença renascentista.

Confessamos que é difícil lidarmos com as diferentes versões formuladas por vários pesquisadores, muitos dos quais, além de serem profundamente apaixonados pela figura enigmática de Américo Vespúcio, contam com espíritos pouco técnicos para justificar certos erros e omissões apuradas nas cartas impressas tidas como escritas por Vespúcio. Contudo, uma vez sendo notória a ausência de uma copiosa documentação primária paralela sobre as primeiras expedições destinadas a desbravar a costa virgem brasileira, alguns pesquisadores são induzidos a acreditar nas próprias fantasias intelectuais que inventam quando lidam com documentos tidos pela crítica como falsos. Em outras palavras, eles se tornam vítimas da armadilha criada pela insuficiência quantitativa e qualitativa de fontes de natureza primária. Mas também chegamos à conclusão de que na sombra da Lettera - cuja origem de sua impressão também é incerta - se albergam muitos estudiosos, o que nos indica o poder de sedução que tem o texto vespuciano, apesar de constatarem tantas contradições e tantos outros erros propositais ou involuntários. Mas seja como for, o que se editou em nome de Vespúcio tem grande força entre os pesquisadores, ou seja, tem um imenso poder de seduzi-los.

A controvertida Lettera al Soderine
É verdade que em matéria de documentos “autênticos”, existe alguns deles relacionados com as primeiras missões de reconhecimento e de exploração enviadas ao Brasil após a sua “descoberta” por Cabral, principalmente a documentação de natureza cartográfica (como fontes essenciais de informação). Mas em nossa opinião esta fonte e outros documentos avulsos não são suficientes para que os pesquisadores possam desenvolver um “verdadeiro estudo” sobre as primeiras expedições portuguesas destinadas a explorar o litoral e as vias fluviais de Santa Cruz. Se fossem, os pesquisadores, pelo menos os mais prudentes, jamais se utilizariam das informações contidas nas cartas impressas e imputados a Vespúcio, como elementos de interligação entre os dados retirados dos documentos cartográficos ou de outras poucas fontes. Acontece que para fornecer o desenrolar daquelas expedições (estabelecendo, por exemplo, a cronologia e o percurso das viagens) por carência de testemunhos escritos “autênticos” que os instruam, a maioria dos pesquisadores sempre acaba lançando mão dos relatos da controvertida Lettera, ou seja, esses relatos prestam um precioso, porém, inadequado socorro aos pesquisadores, que então formulam uma série de hipóteses com escassas probabilidades de se firmarem e muito menos de convencer.

Em suma, a dependência existente em torno da tradição escrita vespuciana é tão forte e atraente - e isto se dá até com os ciosos especialistas portugueses, sem falar nos italianos ( os historiadores tendem a defender os navegantes de sua nacionalidade). Mas todos ou quase todos, sejam lusos ou italianos, os pesquisadores estão mais do que cientes de que as informações fornecidas pela Lettera não são nada confiáveis (dignas de crédito). Todos deveriam estar cientes que aquela carta impressa em ano incerto foge da convenção da veracidade - própria da História e se insere na convenção da ficcionalidade - própria da Literatura. Em outras palavras, as cartas originais particulares que Américo Vespúcio teria escrito desapareceram e aquilo que hoje lemos como produto impresso (a exemplo da Lettera) não constitui documento (fonte histórica primária), de maneira que ela (a Lettera) nem pode ser considerado sequer depoimento do próprio Vespúcio, uma vez que não existe o manuscrito original. Apenas dizem alguns historiadores - principalmente os reabilitadores da obra de Véspúcio - que o documento original se extraviou sem deixar o menor vestígio, não obstante ignoramos como haveria tão importante manuscrito desaparecer dos arquivos do poderoso primeiro magistrado, Piero Soderine.

Américo Vespúcio, um narrador romanesco e fantasista?
De modo que as desconfianças e objeções graves nunca deixaram de ser legítimas relativos ao legado vespuciano, pelo menos entre os pesquisadores imparciais, dando ensejo para que alguns analistas viessem elaborar estudos para asseverar que o texto da Lettera não passa de um arranjo literário composto sobre várias fontes. Sejamos razoáveis, tudo indica que as viagens de 1497 e 1503 são viagens imaginárias e quem as produziu, cometeu fraudes e faltou deliberadamente com a verdade, mas em nossa opinião, a responsabilidade do texto impresso da Lettera - que Vespúcio é tido como autor - não lhe pode ser atribuído como quer seus detratores, taxando-o como muitos já o fizeram, de embusteiro, contribuindo para criar um profundo preconceito à imagem do primeiro piloto-mor da Espanha. Mas adiante vamos tentar esclarecer esse assunto. No momento o que pretendemos revelar é que o conjunto das cartas existentes, as duas impressas (Mundus Novus e a Lettera) e as quatro cópias manuscritas que (foram encontradas em códices) não é, para dizer o menos harmônico. Existem dados que não combinam, mas a grande divergência é que a Lettera descreve quatro viagens feitas por Vespúcio e as outras todas (cópias manuscritas) referem-se somente a duas: a viagem realizada com os espanhóis em 1499, e com os portugueses, em 1501.

Ora, vale ressaltar que segundo alguns historiadores portugueses cujos estudos conseguimos consultar, nenhuma obra impressa em Portugal durante o século XVI menciona Américo Vespúcio como tendo navegado a serviço de D. Manuel; mencionam que não há uma só notícia ou referência ao florentino e às suas famosas narrativas, nos milhares de documentos do século XV e XVI, conservados nos arquivos lusitanos. Nos causa, portanto, estranheza que a Lettera a qual tem a seu favor a consagração da publicidade quanto vertida para o latim e impressa em 1507, sob o título Quatuor Americi Vesputii Navigationes, não seja mencionada em Portugal - onde segundo a própria carta impressa - Vespúcio fez duas viagens com os portugueses. É quase impossível acreditar que com a divulgação de que gozou - a versão latina da Lettera impressa no nordeste da França no ducado de Lorena - não tenha chegado nas livrarias de Portugal, porquanto, Lisboa era uma cidade essencialmente cosmopolita, a ser freqüentada assiduamente pelos mercadores e marítimos de quase todos os cantos da Europa, sendo ainda residência de muitos comerciantes florentinos. Asseveram então os pesquisadores portugueses, que não se pode admitir que a carta impressa em nome de Vespúcio tivesse passado despercebida, principalmente entre os súditos mais próximos da coroa lusitana, e muito menos entre seus cosmógrafos e pilotos. Justificam, portanto alguns pesquisadores lusos que as cartas de Vespúcio (Mundus Novus e a Lettera) podiam e deviam causar sensação entre os letrados da Itália, França e Alemanha, mas a gente erudita portuguesa não concederia grande atenção aos escritos do florentino e concluem que Vespúcio era um narrador romanesco e fantasista, onde suas narrativas teriam para os portugueses do tempo de D. Manuel uma importância medíocre. Curiosamente, também não se conhece uma única referência das edições das cartas de Américo Vespúcio na Espanha, muito embora ele gozasse naquele reino de notoriedade tal que como já dito, lhe foi atribuído o cargo de piloto-mor da Casa de Contratação em 1508, sendo que em 1505 já havia se naturalizado espanhol.

Informações mistificadoras: um naufrágio de uma nau capitânia e a fundação de uma feitoria
Por agora limitamo-nos a revelar que por causa de fatos e circunstâncias que as viagens vespucianas acabam revelando e correlacionando-as com episódios históricos extraídos de outras fontes, para a maioria dos pesquisadores, às referidas viagens contidas na Lettera tem valor histórico (sendo que a maioria daqueles, geralmente se abstém de comentar a ruidosa viagem de 1497). Para esses pesquisadores, existem circunstâncias e indícios que se congregam em favor da autenticidade da Lettera, ou seja, é possível encontrar alguns fios de informações corretas. Mas esses estudiosos - mesmo que façam um meticuloso trabalho de depuração - sempre estarão sob um severo dilema de ordem historiográfica. Por exemplo - não falaremos ainda das apócrifas - mas a viagem de 1501, relatada na Lettera (esta tida como legítima apesar de ser deploravelmente deficiente) seu conteúdo é de tal maneira tão confuso, vago, impreciso e incerto que segundo a opinião de um de nossos pesquisadores pátrios, Max Justo Guedes, ela perderia seu valor histórico, se não fosse utilizada tão somente como elemento auxiliar. Mas na verdade quando analisamos a maioria dos estudos até então elaborados sobre as viagens destinadas a desbravar a costa descoberta por Cabral, observamos que a utilização dos relatos lacônicos e truncados da carta impressa em nome de Vespúcio vai mais além do que simples elementos de interligação, de modo que os estudos, de uma forma ou de outra, sustentam, ou melhor, validam as várias informações mistificadoras fornecidas pela Lettera, tais como, por exemplo: o naufrágio de uma nau capitânia e da fundação de um entreposto comercial (feitoria) que certamente deveria ser realizado tão somente pelo capitão-mor da armada portuguesa.

As viagens de explorações de 1499 e 1501
Em suma, a autenticidade de todas a cartas de Vespúcio (cópias manuscritas e as impressas) - com influência decisiva na cronologia e no número das suas viagens - tem sido desde longa data, objeto de acirrados debates entre os analistas, dando origem a questionamentos que principiaram com frei Bartolomeu de las Casas, na sua “História de las Índias” (1552), embora já antes do religioso espanhol se pronunciar, Servet houvesse criticado os que haviam denominado América ao continente descoberto por Colombo. Ora, diga-se de passagem, que aqueles que foram defensores mais ferrenhos e extremados da importância “documental” das cartas vespucianas, a exemplo do historiador argentino Roberto Levellier – o qual acreditava na autenticidade básica de todas as cartas - reconheceram depois que nada há no conjunto que não seja questionado.

A carta que impressa em Florença, e que a tradição escrita diz que Vespúcio teria destinada ao magistrado da república italiana - Piero Soderine - é conhecida pela designação de La Lettera. A obra é um opúsculo de 32 páginas, formato quarto pequeno. E os exemplares desse folheto são raríssimos.

A exemplo da anterior (conhecida pela denominação erudita de Mundus Novus) o manuscrito original como já mencionamos acima, desapareceu. Entretanto encontra-se em voga, principalmente entre os historiadores franceses, que para tirar plenamente proveito das fontes narrativas, implica renunciar ao dogma do estabelecimento do “texto original” como objetivo final, e único, do trabalho de edição. Mas mesmo em face dessa moderna abordagem, evidentemente vem faltar a prova documental da autenticidade da Lettera, de modo que sobre a qual poderia pronuniciar-se a perícia paleográfica. E sobre a Lettera, isso foi feito recentemente pelo historiador uruguaio Rolando A. Laguarda Trías, pois fundamentado principalmente no estudo lingüístico das cartas, seus hispanismos e alguns lusitanismos, e bem assim nas informações geográficas nelas inseridas, concluiu o arguto pesquisador uruguaio que relativo a Américo Vespúcio podem ser unicamente atribuídas as cartas de 1501 e 1502, sendo as demais obras de falsário - que identifica - contendo informações extraídas das cartas ditas autênticas ou de documentos verdadeiros, somados a fatos inexistentes, inventados então pelo forjador. Para nós bastariam estas circunstâncias para já suspeitarmos de que a totalidade do texto da Lettera não passa de mistificação, muito embora, das informações dos estudos que conseguimos depurar, acreditamos que Vespúcio realmente tenha participado somente das viagens de 1499 e 1501.

Mapas e livros: a avidez pelo conhecimento
O leitor pode querer indagar. Que objetivo teriam em forjar parte da Lettera, que iria tão somente se tornar famosa fora da Itália, quando vertida em latim e editada em 1507 sob o título Quatuor Amereci Vespucii Navigationes numa impressora da cidadezinha francesa de Saint-Dié? Cabe acrescentar que a Lettera vertida em latim foi incluída num pequeno volume chamado Cosmographiae introductio, quando então neste pequeno volume de 103 páginas, que continha um planisfério (ou mapa-do-mundo), a quarta parte do Mundo - então desconhecida pelos habitantes da Europa, África e Ásia - foi batizada de América, uma vez que naquele lugar (Saint-Dié) oculto e distante dos grandes centros fervilhantes europeus, situado nas montanhas dos Vosges - membros de uma sociedade cultural provinciana - acreditaram convictamente no que dizia a Lettera. Em outras palavras, as informações da Lettera vieram soar aos sentidos daquele grupo de letrados, através de um tom tal de autenticidade, que deram crédito de que Vespúcio numa postura individualizada e num papel preponderante que ele teria tomado nas viagens ibéricas, vinha então revelar a existência de um Novo Mundo. Em resumo, levando em conta as linhas gerais da mentalidade da época, achamos que o que vinha singularizar a Lettera diante daquele grupo de letrados de Saint-Dié que se dedicavam a reviver a literatura científica da antigüidade, certamente era o poder de convicção com que o compilador redigiu o texto da Lettera, conferindo-lhe veracidade e insuspeição. Vale comentar que se os copistas de manuscritos originais na época intervinham pessoalmente em um texto que julgavam pertencer tanto a eles quanto a um autor cujo estatuto moral não estava definido, imagine o que poderia fazer um compilador à serviço de editores que com interesse em ganhar dinheiro procuravam iludir os leitores da época, dizendo por exemplo, que direta era a fonte onde haviam obtido a narração das viagens ao misterioso Mundo Novo, tal como as que a Lettera narra que foram feitas por Vespúcio. Ora certos copistas - autores de famosos códices - ao transladar para seus cadernos, as cartas manuscritas, acrescentavam ou cortavam o texto, interpretavam o conteúdo, corrigiam, às vezes até a forma. Imagine então o que os compiladores visando o lucro, podiam fazer: além de inventar pormenores, ampliar dados, adulterando profundamente o conteúdo, por exemplo, de uma carta, ou quando não a inventavam por completo. Esses compiladores obtinham imediata recompensa dos editores que não titubeavam em nome do lucro, de propagar falsas notícias. Podemos então afirmar que a Lettera foi produto desse esquema influente existente na Florença renascentista, mantido por um ou mais editores que aproveitaram da avidez do público por obter informações sobre os descobrimentos que os ibéricos estavam realizando do outro lado do Mar Oceano.

Em Florença, não faltaria quem o apontasse como mentiroso
Mas existe um dado curioso sobre a Lettera e que não podemos nos eximir de revelar: consta que A Lettera al Soderini sendo um folheto maior e mais interessante do que a Mundus Novus, ornado de ilustrações fazendo alusão sobre as quatro viagens que Vespúcio teria feita ao Novo Mundo - portanto de aparência e leitura atraente - não conseguiu passar de uma única edição. É do historiador Thomaz Oscar Marcondes de Souza, o autor das informações acima, e ele chegou então a indagar porque a edição da Lettera em Florença - onde havia natural curiosidade pelos descobrimentos marítimos - uma vez que seus banqueiros, tais como os Medici e os Marchioni financiavam as expedições portuguesas e espanholas, a Lettera nunca mais foi impressa, ou melhor, não passou de uma só edição.

Thomaz Oscar Marcondes de Souza, então concluiu que a razão parece estar no fato de ser a Lettera considerada apócrifa em vista de serem conhecidas às verdadeiras cartas que Américo Vespúcio teria escrito a Lorenzo di Pier Francesco de Medici, seu patrão e amigo, as quais eram copiadas e recopiadas pelas pessoas de Florença, que se interessavam vivamente por descrições de viagens. O antigo sócio do IHGSP para reforçar a sua opinião, comenta sobre o fato singular do editor da Lettera procurar forçar a sua venda, ora anexando-a ao opúsculo de São Basílio, impresso em 1506, ora à carta de André Corsali estampada em 1516.

Para corroborar com sua argumentação, Thomaz Oscar Marcondes de Souza vem citar que o analista italiano Alberto Magnaghi fazendo um elevado número de confrontos entre tópicos da Lettera e documentos da época - inclusive várias narrações de viagens - demonstra ser ela uma verdadeira colcha de retalhos, quando, por exemplo, na quarta viagem ( a de 1503, onde encontra-se relatado o naufrágio de uma nau capitânia e a fundação de uma feitoria em algum ponto da costa brasileira), esgotadas então pelo compilador todas as fontes, a narração é curta, se bem que se notem algumas passagens que foram inspiradas pela leitura das cartas de Piero Rondinelli, de 3 de outubro de 1502. Para finalizar o comentário que Thomaz Oscar Marcondes de Souza, o mesmo proferiu através de numa palestra em 18 de março de 1954 - ao ser comemorado o V Centenário do nascimento de Américo Vespúcio - que o florentino estava impossibilitado de adulterar a verdade e seria um verdadeiro embusteiro se distribuísse as suas viagens como estão na Lettera, pois em Florença não faltaria que o apontasse como mentiroso.

Um grande e impressionante mapa, que batizaria o Novo Mundo
O ignorado grupo de letrados de Lorena (Saint-Dié), os quais tudo indica eram inexperientes em autoridade na área da cosmografia e geografia em comparação aos portugueses e espanhóis, que pela prática estavam desvendando os espaços do globo e sem contar com outras obras confrontadoras, crédulos, elevaram as informações da Lettera em um estatuto tal de testemunho verdadeiro e privilegiado, que a propagaram através de uma impressora instalada no ano de 1500, mas não sabiam eles que passavam a divulgar notícias falsas sobre a história dos descobrimentos. Contudo, a Lettera impressa em Saint-Dié em latim, serviu pelo menos para universalizar mais cedo, o conhecimento do novo continente - ora, novo apenas do ponto de vista eurocentrista. A credulidade dos membros daquele grupo encontra-se evidenciada através das palavras de Ilacomulus (um dos principais membros do grupo dos vosges), que num comentário que insere no tratado Cosmogrphiae introductio, vinha propor o nome de América para a quarta pars orbs (a quarta parte do mundo), que se limitava então ao litoral atlântico da América do Sul. Transcrevemos o comentário extraído do livro “Os Descobridores” do norte-americano Daniel J. Boorstin nos seguintes termos: “Ora, estas partes da Terra {Europa, África, Ásia} foram mais extensivamente exploradas e uma quarta parte foi descoberta por Américo Vespúcio (como será descrito adiante). Na medida em que tanto a Europa como a Ásia receberam nomes de mulheres, não vejo nenhuma razão para alguém justamente se opor a chamar esta parte Amerige{do grego “ge”, que significa “terra de”}, isto é, a terra de Amérigo, ou América, derivada de Amerigo, o seu descobridor, homem de grande competência.” O bem intencionado Ilacomilus ainda reforçou a sua sugestão em duas outras passagens do seu texto. Para acompanhar tais itens, e como terceira parte da Cosmographiae, imprimiu um grande e impressionante mapa de doze xilogravuras feitas em Estrasburgo. Cada folha media 45 cm x 61,25 cm, e quando as folhas foram devidamente coladas umas às outras o mapa ficou com uma superfície de cerca de 3,35 metros quadrados. No cimo, Ilacomilus ainda deu mais ênfase à sua nova mensagem que propagava para o mundo, com a impressão de dois retratos dominantes: um era de Claudius Ptolemaeus virado para o oriente e o outro era de Americus Vespucius virado para o ocidente.

Apagando a criação de um engano, tarde demais
Em 1508, ano em que Vespúcio vinha assumir na Espanha o recém e bem pago cargo de piloto-mor - Ilacomilus então se vangloriava com seu sócio de que o planisfério deles era conhecido e comentado em todo o mundo. Não tardou a anunciar que tinham vendido mil exemplares. Mas como bem escreveu Daniel J. Boorstin a imprensa podia disseminar, mas não podia recuperar. O que o historiador norte-americano em sua obra “Os Descobridores” vem assim revelar, é que para o aborrecimento do criador do nome América - esse “aprendeu à sua custa o fantástico e irreversível alcance daquela nova tecnologia”. Consta que Ilacomilus, uma vez chegando aos seus ouvidos o verdadeiro conhecimento sobre os descobrimentos geográficos do ultramar mudou de idéia e decidiu que Américo Vespúcio não deveria ter o crédito de verdadeiro descobridor do Novo Mundo, o que evidentemente já era tarde demais. E assim em todos os três mapas posteriores que ele editou - estampando a existência do Novo Mundo - Ilacomilus - um homem de vastos interesses, com uma sensibilidade poética para as palavras e um apaixonado pela geografia - vinha apagar a criação de seu engano: América - o que demonstra que ele não queria mais compactuar com o erro histórico que cometera, o que vinha contrastar com a mentalidade da grande parte dos impressores de livros e mapas de sua época, quando não abandonavam facilmente o seu produto impresso, mesmo que as idéias passassem de moda ou que os mapas fossem revistos por novas descobertas, uma vez que a tipografia já se tornara uma nova indústria e um meio de comércio vantajoso, sendo que o processo e o material para preparar a impressão de um mapa eram bastante dispendiosos. Afinal, os impressores estavam tão somente preocupados com o prejuízo que advinha na impressão de um novo mapa e na com a verdade dos fatos históricos.

Uma ilha perdida na imensidão do Atlântico: palco de uma tragédia marítima?
Mas o batismo já se encontrava irremediavelmente difundido, onde acabara ficando indelevelmente impresso nos mapas que se faziam pelas tipografias da Europa. O nome que fora aplicado apenas na parte meridional (sobre o Brasil), parece que indicava ser tão atraente, que quando Gerardo Mercator publicou o seu grande mapa do mundo em 1538, oficializava geograficamente uma “América do Norte” e uma América do Sul”, embora o nome do continente tivesse durante muitos anos denominações concorrentes. Acrescenta Daniel J. Boorstin que a imprensa, ainda apenas com meio século de existência, revelou o seu poder sem precedentes de difundir informação - e também, a desinformação.

Agora depois do que foi exposto acima, vamos tomar conhecimento de uma das expedições que Gonçalo Coelho fez a Terra de Santa Cruz, a qual, segundo vários pesquisadores, seria a que se refere a Lettera, na viagem que Vespúcio teria feito em 1503. A informação parte de um texto quinhentista português. Pertence ao cronista-mor do reino Damião de Góis: Num dos capítulos da sua “Chronica do Serenisssimo Senhor Rei D.Manuel” publicada em 1567 narra que no ano de 1503, D. Manuel expedira “Gonçalo Coelho com seis naus á terra de Santa Cruz, com que partiu do porto de Lisboa aos dez dias do mez de Junho, das quaes por ainda terem pouca notícia da terra, perdeo quatro, & as outras, trouxe ao regno, com mercadorias da terra, que entam nam erão outras, que páo vermelho, a que chamam Brasil, bogios, & papagaios”.

Para os historiadores portugueses nada poderia ser tão pior do que saber apenas através de tão poucas linhas e entre tantas testemunhas lusas da época, acerca dessa expedição de 1503, comandada por Gonçalo Coelho. Não obstante, temos que levar em conta que os cronistas, fossem eles de qualquer nacionalidade, geralmente se prestavam para produzir narrativas resumidas e muitas das vezes sensacionalistas. Uns e outros as faziam sob o cunho real ou imaginário, visando retratar a realidade histórica, sendo que as narrativas eram redigidas de acordo com o critério cronológico. Em suma, o produto final dos cronistas era confuso e incorreto, além de se copiarem entre si, sem qualquer critério crítico. Para alguns historiadores portugueses, a omissão sobre a viagem de 1503 ao Brasil por parte dos outros cronistas é um fato difícil de explicar.

Mas agora cabe revelar que todos os problemas gerados em torno dessa importante expedição tão sucintamente narrada por Damião de Góis, se fazem por conta da existência de um outro produto impresso da ativa tipografia quinhentista, ou seja, a nossa conhecida Lettera al Soderini - já denunciada acima como resultado de uma fraude - mero produto da imaginação. Vamos então conhecer o polêmico relato da Lettera sobre a jornada que Vespúcio, na qual informa que justamente a nau capitânia de sua armada se perdeu ao largo de uma ilha anônima a qual se encontrava perdida na imensidão do Atlântico (a transcrição foi extraída da História da Colonização Portuguesa do Brasil, volume II):

Apenas ratos, serpentes e lagartos de duas caudas
“Resta-me dizer às cousas que vi na quarta viagem ou jornada, e tanto por estar cansado, por causa de uma desgraça que nos sucedeu no golfão do mar Atlântico, como Vossa Magnificência não tardará em ver, cuidarei de ser breve. Partimos deste porto de Lisboa com seis naus de conserva com o propósito de ir descobrir no Oriente uma ilha chamada Malaca, a qual se diz ser muito rica (...). Partimos no dia 10 de maio de 1503 e fomos em direitura às ilhas de Cabo Verde, onde concertamos as carenas e tomamos toda a casta de refrescos. Depois de uma demora de 13 dias, partimos navegando com vento siloco(sueste), e como o nosso Capitão-mor era homem presunçoso e obstinado, quis ir reconhecer a Serra Leôa, terra da Etiópia Austral, sem disso haver alguma necessidade, senão para fazer ver que era capitão de seis naus, e contra a vontade de todos nós, os outros Capitães. Assim navegando, quando nos achamos junto à dita terra, tamanhos foram os vagalhões que nos assaltaram e o vento tão contrário, que estando à vista dela alguns quatro dias nunca o temporal nos deixou aproximar, de modo que fomos forçados a regressar à nossa verdadeira derrota e abandonar a dita Serra...navegando dali para o Sudoeste que é um vento entre o Sul e o Sudoeste, e quando tínhamos andado bem 300 léguas através do monstruoso mar, estando já da linha equinocial para o Sul bem 3 graus, se descobriu uma terra de que podíamos estar distantes umas 22 léguas, de que ficamos maravilhados e achamos que era uma ilha no meio do mar, cousa de grande altura, verdadeira maravilha da natureza, pois não tinha mais de duas léguas de comprido e uma de largo e nunca habitada por gente alguma. Foi esta ilha para a armada malfazeja: porque saberá V.M. que por mau conselho e regimento do nosso Capitão-mor aqui ele perdeu a sua nau, dando com ela em um escolho, e se arrombou na noite de S. Lourenço, que é a 10 de Agosto, afundando. Dela se não salvou cousa alguma senão a gente. Era uma nau de 300 toneladas, na qual ia todo o importante da frota: e como toda a esquadra trabalhasse por lhe achar algum remédio, o capitão mandou-me que fosse com a minha nau à dita ilha em procura de um bom surgidouro onde pusessem surgir todos os navios: e porque o meu batel, tripulado por 9 dos meus marinheiros, estivesse em serviço e ajuda de ligação entre os navios, não quis que o levasse comigo, mas que fosse sem ele, dizendo-me que depois mo levariam à ilha. Partimos da frota, como mo ordenavam, para ir à ilha sem batel e com menos de metade da tripulação. Fomos à dita ilha, que distava cerca de 4 léguas, na qual encontramos um excelente porto onde bem seguramente podiam surgir todos os navios, onde esperei bem uns 8 dias pelo meu capitão e a frota, que não vieram. De modo que estávamos muito descontentes, e a gente que tinha ficado comigo mostrava um tal terror que não conseguia consolá-la. Estando assim, avistamos no oitavo dia uma nau, e receando que não nos visse, fizemo-nos à vela com os nossos navios e fomos ao seu encontro, pensando que me trazia o batel e os meus homens, e quando estávamos borda com borda e depois de nos termos saudado, disseram-nos que a Capitânia afundara, salvando-se a tripulação, e que o batel e os meus homens tinham ficado com a frota, que se fora mar em fóra, o que nos causou grande tormento, como bem pode imaginar V.M., por nos acharmos a mil léguas de distância de Lisboa, no mar alto e com pouca gente. Contudo, fizemos frente à desgraça e navegamos para diante. Tornando à ilha, provemo-nos de água e lenha com o batel da minha conserva. Esta ilha é desabitada, com muitas águas doces e correntes, infinitas árvores, e tantas aves marinhas e terrestres que eram inumeráveis, e tão familiares que se deixavam apanhar a mão; e assim caçávamos tantas que carregamos um batel delas. Não vimos outros animais senão ratos grandes, lagartos de duas caudas e algumas serpentes. Tendo concluído a nossa provisão, partimos com o vento entre Sul e Sudoeste porque tínhamos regimento do Rei ordenando que o navio, qualquer que fosse, que se perdesse da frota ou da capitânia, devia ir a terra da viagem passada. Descobrimos nela um porto, a que pusemos o nome da Bahia de Todos os Santos aprouve a Deus dar-nos tão bom tempo que em dezessete dias tomamos aí terra, que distava da ilha bem uma 300 léguas. Não encontramos lá nem o nosso capitão nem nenhuma outra nau da armada. Esperamos dois meses e quatro dias, e vendo que nada resolvíamos, decidimos a minha conserva e eu correr a costa e navegamos mais para diante 260 léguas, até chegarmos a um porto onde concertamos construir uma fortaleza, o que fizemos. Nela deixamos 24 cristãos que vinham na minha conserva, que os recolhera da nau capitânia naufragada (...)”

A barca francesa Le Sire Vironné, o registro do naufrágio mais antigo ali ocorrido?
Da simples leitura despretensiosa desse relato, somos obrigados a concordar com os comentários feitos pelo célebre almirante português Gago Coutinho - que uma vez possuindo uma vasta competência prática e científica na arte de navegar e um profundo conhecedor da náutica praticada nos anos de 1500 – ele afirma que essa viagem narrada na Lettera parece contada por quem nela não embarcou. Acrescenta ainda o renomado navegador luso em seu livro: “A Náutica dos Descobrimentos”, que o conhecimento que hoje temos da geografia “denuncia outras mentiras de Vespúcio ou, pelo menos, das suas cartas”.

Entretanto sou da opinião de quem dissimula é a carta que foi impressa citando como seu autor, o excelente e culto Vespúcio, que em parte se formou e aperfeiçoou na experiente escola náutica lusitana, e um dos primeiros se não o primeiro, a levar para a Espanha a grande novidade daquela escola, ou seja, a determinação da latitude no mar, com uso de instrumentos tais como o astrolábio e das tábuas de declinações solares, além do conhecimento sobre do regimento do Sol. Portanto não pode ser admissível que o futuro piloto-mor da Espanha que receberia de soldo 50.000 maravedis anuais, capaz então de ombrear com os famosos e experientes navegadores espanhóis da estirpe de Pinzón, Solis e La Cosa e talvez suplantá-los nos conhecimentos teóricos, fosse capaz de escrever tão inverídico relato, cometendo erros de geografia e náutica que qualquer especialista consegue apontar. A nossa opinião, como já mencionamos acima, é a mesma daqueles que já afirmaram que a Lettera não passa de uma obra forjada para ilaquear a boa fé dos incautos, tal como aconteceu com os estudiosos de Sain-Dié. Ora, só um compilador incompetente e de pouca cultura náutica e geográfica, pudesse naquela época forjar tantos malabarismos, tomando é claro, como base, algumas fontes essenciais de informação. Repetindo, não é admissível que a viagem de 1503 narrada na Lettera, tenha sido obra do punho do verdadeiro Vespúcio, uma vez que é tão mais difícil duvidar da capacidade de Américo Vespúcio como piloto, pelo menos mais teórico do que prático, pois ele foi o responsável pelo exame de todos os pilotos espanhóis que já exerciam o importante ofício e entre eles, encontravam-se aqueles que haviam participado dos descobrimentos castelhanos até a data em que Vespúcio foi encarregado pelo reino espanhol para o cargo de piloto-mor da Casa de Contratação de Sevilha. Cabia então ao piloto-mor ensinar a teoria da navegação em uso aos navegantes espanhóis que desejassem exercer uma profissão de relevante prestígio no mundo náutico de outrora.
Finalizando, a maioria dos especialistas de nossos dias, tende, entretanto, a adotar a opinião do já citado italiano Alberto Magnaghi, defendida em seu clássico “Amerigo Vespucci”, publicado em 1924, basicamente oposta à opinião até então dominante inspirada em nosso historiador Varnhagen. O professor italiano considera hábeis falsificações as cartas publicadas no princípio do século XVI (a Mundus Novus e a Lettera), e julga as cópias das três cartas manuscritas autênticas (não conhecida então a conhecida por “fragmentária”, mas quando o fez posteriormente, Alberto Magnaghi também duvidou de sua autenticidade).

Consta que algumas pessoas vêm perseguindo o sonho de achar nas águas cristalinas do arquipélago de Fernando de Noronha, a tal nau capitânia da Lettera. E assim, a de conquistar a primazia de encontrar aquele que seria o primeiro naufrágio de um navio europeu em águas brasileiras. Mas até o momento, em termos concretos de naufrágios “antigos” existentes no arquipélago, existe o registro de que a barca francesa Le Sire Vironné ali se perdeu e cujo sítio arqueológico encontra-se próximo da temida laje da ponta da Sapata, no extremo meridional da ilha de Fernando de Noronha, local onde se acidentou a corveta Ipiranga, a qual depois de oito horas acabaria naufragando ao largo da ilha em outubro de 1983.

Américo Vespúcio, o piloto-mor da Espanha
No século passado, precisamente no ano de 1960, cuidando da problemática vespuciana, o professor italiano Giuseppe Craci chamou a atenção dos leitores para a crise que atravessavam os estudos da história da geográfica, nos quais “desde muito tempo, enfim, aventuram-se, com arrogante desfaçatez, os mais desprovidos rabiscadores dos dois continentes”. Sem radicalizarmos tanto, é necessário que seja reconhecido que por várias razões, inclusive por errôneas noções de patriotismo ou de absurdas fobias, os estudos vespucianos tem fugido aos sadios princípios da pesquisa histórica e enveredado pelos caminhos do discurso panegírico ou da crítica denegridora; pior ainda, em face do sensacionalismo que quase sempre cerca o tema, ele vai servindo de campo fértil a despreparados neófitos da historiografia, possivelmente esperançosos de que, em face das controvérsias existentes, as críticas aos enganos ou erros que cometerem serão imediatamente encaradas como ataques de correntes contrárias e perder-se-ão no cipoal da questão, saindo eles beneficiados com a propaganda assim obtida.
Nunca é demais, por isso, lembrar que a história das navegações e dos descobrimentos depende, fundamentalmente, da completa exegese da documentação utilizada, ficando inteiramente viciada e deformada se não forem levadas em conta as possibilidades náuticas das embarcações utilizadas, o condicionalismo físico (ventos, correntes e marés) da região estudada e o conhecimento que dele existia na ocasião do evento, o adiantamento da cartografia coeva, a capacidade física e psicológica das tripulações, além de outras variáveis muitas vezes esquecidas (ou desconhecidas) pelos historiadores, o que também tem afetado (como a muitos outros) os estudos vespucianos.

Américo Vespúcio, mercador e depois, navegador
Nasceu Américo Vesopúcio (Amerigo Vespucci) em Florença, em 18 de março de 1454. Com um tio paterno, Giorgio Antonio (dominicano, deão do Duomo, humanista e literato), fez os seus estudos básicos, que incluíam o latim; na mesma época, outro tio, Bartolomeu Vespucci, comentarista da De Sphera, de Sacrobosco, era catedrático de astrologia em Pádua, tendo tido, segundo alguns comentaristas, influência na formação intelectual do sobrinho. Tudo indica que Vespúcio ao ser criado e educado no ambiente mais culto da Europa, conquistaria condições intelectuais favoráveis para que no futuro viesse facultá-lo a adquirir conhecimentos técnicos, principalmente na arte náutica, o que o transformaria no piloto de reconhecida fama na Espanha. Américo Vespúcio, ingressou no serviço de Lorenzo di Pier Francesco de Médici, o Popolano (não confundi-lo como o primo e homônimo, o Magnífico), que possuía uma importante casa comercial, tendo negócios de vulto no exterior, inclusive na Espanha. E foi para a Espanha que Américo Vespúcio se transferiu, sendo certa a sua presença em Sevilha no mês de dezembro de 1492, onde atuaria como mercante (mercador), é como ele próprio então se classificou.
Na movimentada cidade andaluza, associou-se a outro florentino, Giannetto Berardi, armador e provedor de frotas destinadas a explorar as novas terras descobertas por Cristóvão Colombo. E mesmo após o falecimento de Berardi, ocorrido em 1495, Américo Vespúcio continuou neste ramo de atividades, até que no final da década, passaria a freqüentar na intimidade, o mundo dos navios ibéricos, que deixavam a Europa para explorar as costas do Novo Mundo. Mas em sua curta vida de mareante, Vespúcio alcançaria fama imorredoura, devido aos escritos a ele atribuídos e que foram publicados.

Mundus Novus, o sucesso retumbante
Por Johanes Otmar Vindelice, foi publicado um panfleto em latim com 15 páginas com uma saudação : Mundus Novus. Albericus Vespucius Laurentio Petri de Medicis salutem plurimam dicit (máximas saudações de Américo Vespúcio a Lorenzo di Pier Francesco di Medici). O panfleto narrava uma viagem de Américo Vespúcio a um novo continente, a quarta parte do mundo, o Novo Mundo. Na realidade era uma versão de uma carta que Américo Vespúcio teria endereçado a Lorenzo di Pier Francesco di Medici, narrando sua viagem de 1501-1502, sob a bandeira portuguesa, acrescida de outros textos de outros autores (navegadores, diplomatas, comerciantes e informantes) sobre as viagens ao novo continente. Somente a primeira edição não teve título. A partir da segunda, publicada em 1504, um nome ficaria gravado, Mundus Novus, de Américo Vespúcio. A obra Mundus Novus se tornou um sucesso editorial. Em apenas um ano, teve 12 edições e foi traduzida para o alemão, italiano, francês, holandês, inglês, tcheco. Até 1508 eram 41 edições.

As chamadas cartas vespucianas, quatro são cópias manuscritas
Hoje, servem-se os estudiosos, das chamadas “cartas vespucianas”, em número de seis, duas delas impressas, as demais só conhecidas por cópias manuscritas:
a)Carta (manuscrita) a Lorenzo di Pier Francesco de Médici, Sevilha, 18(ou 28) de julho de 1500;
b)Carta (manuscrita) a Lorenzo di Pier Francesco de Médici, Cabo Verde, 4 de julho de 1501;
c) Carta (manuscritas) a Lorenzo di Pier Francesco de Médici, Lisboa, 1502;
d)Carta a Lorenzo di Pier Francesco de Medici, sem local nem data, impressa em latim com o título Mundus Novus (a primeira edição com data de impressão positiva é a de Ausburgo, 1504); e)Carta intitulada “Lettera di Amerigo Vespucci delle isole nuovamente trovate in quattro suoi viaggi”, acredita-se que tenha sido impressa em 1505 ou 1506, por Gian Stefano di Carlo di Pavia para o livreiro Piero Paccini. Foi vertida para o latim e impressa, em 1507, com o título “Quatuor Navigationes;
f)Carta conhecida como fragmentária, por faltar-lhe início e fecho, não tem local e nem data.

Obras de um falsário?
A autenticidade destas cartas, com influência decisiva na cronologia e no número das viagens vespucianas tem sido objeto de acirrados debates entre os historiadores, dando origem a questionamentos que principiaram com frei Bartolomeu de las Casas, na sua Historia de las Índias(1522), embora já antes dele, Servet houvesse criticado os que haviam denominado “América” ao continente descoberto por Colombo; de então, muitos escreveram, louvando uns o florentino e acreditando na veracidade dos escritos que lhe são atribuídos, enquanto outros lhe negam qualquer valor histórico. Exemplificando: Varnhagen e, na sua esteira, Harrise, Fiske e Vignaud deram unicamente crédito aos textos impressos em vida de Amerigo; Magnaghi defendeu a tese inversa, repudiando a Mundus Novus, a Lettera e a fragmentária e aceitando apenas os textos manuscritos explicitamente endereçados ao Médici, com local e ano. E não tem muito tempo, o já falecido historiador uruguaio Rolando A. Trias, fundamentado principalmente no estudo lingüístico das cartas vespucianas, seus hispanismos e alguns lusitanismos, e bem assim nas informações geográficas nelas inseridas, concluiu que a Vespúcio podem ser unicamente atribuídas às cartas de 1501 e 1502, sendo as demais obras de falsário – que identifica – contendo informações extraídas das cartas ditas autênticas ou de documentos verdadeiros, somadas a fatos inexistentes, inventados pelo forjador.

Américo Vespúcio foi excluído pelo rei
Depois de suas experiências como mareante, onde passou pela excelente escola náutica portuguesa, na Espanha, em março de 1505, encontramos Américo Vespúcio na célebre Junta de Toro, convocada por Dom Fernando e da qual participaram o bispo Fonseca, Pinzón e ele, Vespúcio. Ficou resolvido então que os dois nautas iriam descobrir “pelo oceano certas partes” que eles comunicariam aos oficiais da Casa da Contratação de Sevilha. Naturalizado por cédula de 24 de abril, Vespúcio passou a preparar, em uma união com Pinzón, a referida expedição, mas a mesma por vários motivos não foi concretizada. Outra Junta foi formada em 1507, na qual também participou Vespúcio e logo foi criado o cargo de piloto-mor e para o mesmo foi ele nomeado (cédula de 23 de março de 1508), com soldo de 50.000 maravedis anuais, ao mesmo tempo em que os nautas espanhóis Pinzón e Solis eram designados para achar uma passagem, canal ou estreito “na parte do norte, para ocidente”, isto é, na região da América Central, ainda mal explorada. Modificou-se então o projeto inicial, no qual a passagem seria buscada mais adiante do litoral já descoberto pelos portugueses no Brasil e desse projeto, foi excluído Américo Vespúcio, julgando o rei espanhol que seria melhor empregá-lo em outras atividades de maior importância, como fossem os consignados na carta-patente que lhe foi passada, em Valhadolid, em 6 de agosto de 1508, ou seja:

O correto uso do astrolábio, ensinava Vespúcio até que ele foi colhido pela morte
a)Examinar os pilotos que navegavam para as ilhas e terra firme das Índias e outras partes do Mar Oceano, para verificar sua habilidade no conhecimento e uso do quadrante e do astrolábio e dos respectivos regimentos (isto é, a capacidade de navegar por alturas da estrela Polar e do Sol e assim juntar à prática que possuíam o indispensável conhecimento teórico da arte de navegar);
b)Dar licença provisória a alguns deles, para uma ou duas de tais viagens, enquanto se preparassem para aquele exame, isto para não deixar sem pilotos a navegação das Índias;
c)Presidir à junta dos melhores pilotos, na Casa de Contratação de Sevilha, para elaboração de padron general, ou seja, carta de marear padronizada, a ser chamada Padron Real, pela qual fossem baseadas todas as destinadas às navegações dos espanhóis;
d)Terá, juntamente com os oficiais da Casa, a guarda da Padron Real, onde deveriam ser obrigatoriamente lançados os novos descobrimentos que se efetuassem, segundo relação dos próprios descobridores;
e)Finalmente, competia-lhe, o que é da maior relevância, ensinar, na sua casa de Sevilha e sendo pago por seu trabalho, o que fosse necessário saber pelos que desejassem ter o ofício de piloto, especialmente sobre o uso do quadrante e do astrolábio, para que juntassem “a prática com a teoria”.

Durante quase quatro anos, Américo Vespúcio exerceu o cargo de piloto-mor, nele sendo colhido pela morte em 22 de fevereiro de 1512. E do que foi anteriormente revelado, parece difícil duvidar-se da capacidade de Américo Vespúcio como piloto e também como instrutor, uma vez que além de examinar todos os que já exerciam o ofício de piloto na Espanha, caber-lhe-ia ensinar a teoria da navegação então em uso aos que desejassem exercer o relevante ofício, que incluía além de outros misteres, a determinação da latitude, com o uso do astrolábio.


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