Friday, July 30, 2004

 

Que futuro para o Património Cultural Subaquático em Portugal?

 
Recebi este texto por e-mail de um grande amigo, o Luis Filipe Castro, que é arqueólogo subaquático e professor universitário na Universidade do Texas A&M. 

Neste texto ele tece considerações  várias sobre o futuro da Arq. Sub. em Portugal sob a égide deste novo Governo.

É uma opinião pessoal, mas que não deixa de ser pertinente e conveniente de anotar e reflectir. Enjoy...

"Santana Lopes e os Caçadores de Tesouros
Filipe Vieira de Castro
(Professor Universitário, Nautical Archaoelogy Program, Texas A&M University, Texas, USA)

Em 1993 Pedro Santana Lopes, então Secretário de Estado da Cultura, produziu um decreto – o D.L. 298/93, de 21 de Agosto – que legalizava a caça aos tesouros em Portugal, ou seja, legalizava a destruição de sítios arqueológicos por empresas de salvados para resgate e venda de artefactos com valor no mercado de antiguidades.

Baseada numa série de confusões, esta lei legalizava em Portugal uma actividade proibida há muitos anos em todos os países civilizados do Mundo, e recuperava uma visão romântica da “arqueologia” do século XIX, quando diletantes e negociantes de antiguidades destruíam alegremente sítios arqueológicos, com pás e picaretas, em busca de artefactos valiosos.
Alem de ignorar liminarmente cem anos de história da ciência, a lei da caça ao tesouro de Santana Lopes criava um número considerável de problemas insolúveis.
Ao tratar a arqueologia náutica e subaquática como uma actividade que devia ser remunerada com a venda dos artefactos valiosos resgatados, desconsiderava todos os navios que não contivessem artefactos valiosos, independente do interesse científico que eles pudessem ter. Esta visão da arqueologia determinou, entre outras coisas, que o navio da Ria de Aveiro A, possivelmente uma caravela quatrocentista, ficasse dois anos ao abandono, depois da sua localização ser conhecida por todos os locais e curiosos de Aveiro.  

Ao tratar do resgate de artefactos valiosos para venda posterior no mercado de antiguidades, a lei de Santana Lopes ignorava o objectivo principal da própria arqueologia, que e o estudo dos contextos em que os artefactos são encontrados. Como ignorava ainda todos os artefactos sem valor comercial, independentemente do seu valor científico.

O contra-almirante Isaías Gomes Teixeira, presidente da empresa de caça aos tesouros Arqueonautas SA., então formada com o objectivo de resgatar e vender tesouros submersos dos Açores, declarou ao semanário “Independente” em 28 de Abril de 1995 (revista “Vida”, pág. 16): “Estamos a falar num orçamento para três anos envolvendo milhões de contos e um elevado capital de risco (...) Neste processo tem que haver justo equilíbrio entre o interesse científico e as demoras na recolha. Nós não podemos perder dinheiro e o Estado tem de garantir a conservação do património. E acrescentava “Quando encontrarmos artefactos em mau estado, não se deve perder tempo. Nessa altura temos de recolher só o que tem valor comercial. O que nos interessa são os galeões, que dos séculos XVI a XVIII transportavam pedras do Oriente e prata e ouro das Américas. Os navios que tenham valores a bordo é que nos interessam.”

Ao tratar quase exclusivamente de artefactos com valor no mercado de antiguidades, a lei da caça ao tesouro de Santana Lopes criava uma comissão executiva sem um único arqueólogo, incumbida de resolver a porta fechada a maioria dos assuntos relacionados com a atribuição de concessões de salvados e a fiscalização dos trabalhos. Uma comissão com funções consultivas incluía um único arqueólogo, Francisco Alves, devidamente isolado e desautorizado, de quem o próprio Secretario de Estado da Cultura disse na televisão que ele queria a arqueologia só para si.

Esta era a lei de Santana Lopes, o Secretário de Estado da Cultura cuja peça de música erudita preferida era “os concertos para violino de Chopin”, que foi congelada em 1995 e revogada em 1997, com a criação do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática. 
E verdade que a lei da caca ao tesouro de Santana Lopes exigia que as empresas de salvados tivessem um “arqueólogo responsável”, alias como o exigem hoje as casas leiloeiras mais importantes, uma medida cosmética imposta em resposta a um coro crescente de especialistas, que se insurgem contra a impunidade total destas empresas. Há quatro ou cinco anos Lord Colin Renfrew escreveu um livro excelente sobre este assunto com o titulo “Loot, Legitimacy and Ownership“ que a Sra. Ministra da Cultura devia ler.

A medida que os anos passam, os arqueólogos responsáveis, entre os tais “arqueólogos responsáveis” que fazem a cosmética e as relações públicas destas empresas de salvados, vão deixando uma verdadeira literatura de terror atrás de si, contando sempre a mesma história, em que se sentem como um neurocirurgião a quem e dado um taco de basebol e cinco minutos para operar o crânio de um paciente.

Mas a historia quase surrealista da lei da caça aos tesouros de Santana Lopes veio ainda envolta num outro problema, porventura mais sério. Num artigo no “Semanário”, datado de 27 de Agosto de 1994, Daniel Adrião levantava a possibilidade de haver um conflito de interesses sério na Secretaria de Estado da Cultura de Santana Lopes:  Rui Gomes da Silva, o actual Ministro dos Assuntos Parlamentares e na altura indicado como autor da lei da caça aos tesouros, era advogado de Robert Marx, um conhecido caçador de tesouros, envolvido em escândalos em vários países do mundo: “É verdade que sou amigo e advogado de Bob Marx, não o escondo” declarou na altura Gomes da Silva a o “Semanário” (pág. 51). 

Teria aproveitado o Dr. Rui Gomes da Silva, funcionário da Secretaria de Estado da Cultura, para escrever uma lei que beneficiava o Dr. Rui Gomes da Silva, advogado privado, através de um dos seus clientes? Talvez nunca o venhamos a saber mas Daniel Adrião, em “Gomes da Silva entra na Caça ao Tesouro” (páginas 50 e 51) revela ligações perigosas entre o legislador e os beneficiários desta actividade escandalosa.

E é precisamente a presença de Rui Gomes da Silva no governo, juntamente com a da Ministra da Cultura Dra. Maria João Bustorff Silva – que acumula o cargo de Ministra da Cultura com o de consultora da empresa de caça aos tesouros Arqueonautas SA. – que levanta outra vez a possibilidade de Portugal vir a viver outro período de confusão e desinformação no campo da arqueologia subaquática.

Creio que os portugueses têm o direito de saber se a Dra. Maria João Bustorff Silva vai fazer alguma coisa para tentar parar a destruição de navios portugueses pela empresa de caça ao tesouro Arqueonautas SA. em Moçambique, como prometeu publicamente o seu antecessor, Pedro Roseta, na sequência da venda por aquela empresa, na Christie’s de Amsterdão, de porcelanas e lingotes de ouro retirados de um navio português. 
Além da destruição sistemática dos sítios arqueológicos – sobretudo dos restos dos cascos dos navios, que contêm informações vitais para o conhecimento da construção naval no âmbito da história da ciência e da tecnologia – a venda de artefactos de contextos arqueológicos coerentes desbarata para sempre as colecções e impossibilita o seu estudo, presente e futuro.
Como consultora da empresa Arqueonautas SA. (veja-se: http://www.arq.de/english/company.htm) terá a actual ministra da cultura a isenção necessária para levar a cabo esta importante missão? 

Quanto a Santana Lopes, terá alguma intenção de prejudicar o trabalho excelente, reconhecido à esquerda e à direita, do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática, e sobrepor interesses privados de alguns amigos e conhecidos ao interesse público e ao património nacional?  Poderemos inferir que a nomeação da Dra. Maria João Bustorff Silva para Ministra da Cultura significa uma tentativa de retorno da industria de salvados e a destruição do património subaquático para venda de artefactos valiosos em leiloeiras internacionais?  Julgo que temos o direito de saber."

 




Comments:
Caro Pedro Caleja:

Em primeiro lugar os meus cumprimentos pelo interessantíssimo Blog. Este post é (supostamente) anónimo só para não me dar ao trabalho de me registar. Assim, se interessar, desde já indico o meu mail cha@scadvogados.com e o meu contacto telefónico: 213712360 - 93.5419198 e 91.9446092. Não estou assim anónimo.
Pois bem; em relação ao assunto mencionado chamava a atenção da omissão (ou será mais do que isso e propositado) do legislador na preparação da nova legislação que regulamentará o mergulho amador (que poderá consultar em http://cpas.pt/diversos7lei.html.
Esse projecto, mais precisamente o seu nº 4 faz tábua rasa de toda a legislação de protecção de sítios de interesse arqueológico, remetendo o IPA e o CNANS para um completo esquecimento, abrindo a porta a intervenções autorizadas por "(...)entidades competentes na área onde o mergulho irá ser praticado(...)".
Há que ter em atenção estes pormenores, uma vez que a incompatibilização com legislação anterior trará com toda a certeza dúvidas interpretativas sobre o espírito da lei e sobre a sucessão das leis no tempo. Transmiti esta minha preocupação ao Dr. Francisco Alves e julgo que não podemos deixar passar tal enormidade.

Um Abraço,

Carlos Henriques Antunes
 
Caro Carlos

De facto já tive oportunidade de conversar com o Dr. Francisco Alves sobre a omissão das competências do IPA/CNANS na proposta do CPAS na nova legislação.

Na realidade existem outras duas propostas (que foram posteriormente fundidas numa só)em apreciação pelas entidades competentes.

O CNANS terá de se pronunciar na devida altura e certamente que não o deixará de fazer, pois como frisou, e muito bem, passaria a haver sobreposição de funções ou ainda pior uma subhierarquização do CNANS sobre a vontade de qualquer capitania.
 
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