Wednesday, May 11, 2005

 

Descoberta de ânforas no mar de Peniche

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Texto: Jean-Yves Blot
Edição: Pedro Caleja
Imagens: J. Russo, C. Antunes, R. Venâncio.



Até ao dia 15 de Maio está a ter lugar no lugar chamado Cortiçais, na costa sul de Peniche, uma campanha de arqueologia submarina destinada a esclarecer um episódio náutico ocorrido durante a ocupação romana da região (ver detalhes que se seguem).


Quinze dias numa ilha

A campanha submarina actualmente em curso, organizada pelo Centro Nacional de Arqueologia Subaquática (CNANS, Instituto Português de Arqueologia) com a participação da associação GEPS (Peniche) e o apoio e participação da Câmara Municipal de Peniche, do Museu Municipal de Peniche e do Clube Naval de Peniche, decorre até ao fim da primeira quinzena de Maio de 2005.

A orientação do estaleiro submarino está a cargo de Jean-Yves Blot, arqueólogo convidado pelo CNANS, com a participação de Mário Jorge Almeida, arqueólogo destacado pelo Museu Nacional de Arqueologia, e Jorge Freire, arqueólogo e sócio do GEPS.

Os trabalhos serão realizados em parceria com o arqueólogo A. M. Dias Diogo, no que concerne a identificação dos materiais cerâmicos, e com Rui Venâncio, arqueólogo do Museu Municipal de Peniche, assegurando assim a relação estabelecida com esta entidade e com a Câmara Municipal de Peniche que garante um apoio directo aos trabalhos arqueológicos submarinos.

A logística humana da campanha é assumida numa parceria directa do CNANS com o Museu Municipal de Peniche (R. Venâncio) e o GEPS (J. Russo) através do qual está agendada a participação de alunos de arqueologia da Universidade de Coimbra.

A preparação dos equipamentos mecânicos (barcos, sugadoras, compressores baixa-pressão) utilizados para a campanha é da responsabilidade de Miguel Aleluia (CNANS, Aveiro) com a participação de Leonel Silva.

Os mergulhos efectuados no Outono e no início do Inverno pelo arqueólogo responsável, em colaboração com Luís Fonseca, de Peniche, Jorge Russo (GEPS), Carlos Antunes, e outros, permitiram um reconhecimento e uma cartografia preliminares do sítio.

O detalhe dos trabalhos efectuados durante esta fase de reconhecimento, bem como da identificação e registo dos 176 fragmentos levantados até à data, figura num relatório[1] que o CNANS irá divulgar em formato pdf , a partir do final do mês de Abril de 2005.



A ilha desaparecida

Ignora-se ainda, nesta fase, a origem precisa dos vestígios dos Cortiçais.

Diversos indícios levam, no entanto, a pensar que se trata de um naufrágio ocorrido há quase vinte séculos numa paisagem marítima radicalmente diferente da actual.

Peniche, há dois mil anos, era uma ilha rochosa ao largo de uma costa marcada pelo estuário de um pequeno rio, hoje assoreado, que passava pelo pequeno núcleo portuário de Atouguia da Baleia, actualmente isolado, no meio de terras agrícolas.

A ilha só ficou ligada ao continente por um cordão de areia a partir do final do período medieval. Uma primeira fortificação foi então construída, em finais do século XVI, para defender o porto assim criado pela presença do cordão de areia, sendo posteriormente completada pela fortaleza, e pela actual muralha, construída no século XVII, que fecha, pelo lado de terra, o acesso à antiga ilha.

Nestas circunstâncias, é necessária alguma imaginação para reconstituir a geografia do que terá sido a antiga ilha cuja costa oriental correspondia, grosso modo, ao local onde se encontra a actual muralha. Um antigo presidente da Câmara de Peniche lembra ter visto o mar alagar toda esta parte e voltar a transformar Peniche numa ilha, por breves instantes, em marés vivas que ocorreram em meados do século XX.

Seja como for, a paisagem histórica da antiga ilha é completada pela descoberta, ocorrida no final dos anos 1990, de um conjunto de fornos de período romano em «Peniche de Cima», na zona norte da cidade actual, dentro do recinto das muralhas setecentistas. As escavações arqueológicas levadas a cabo nesses fornos nos últimos anos, pelo arqueólogo Guilherme Cardoso e os seus colegas, puseram em evidência uma produção local de ânforas destinadas à indústria de transformação do pescado.

Em contraste com esta produção local que veio redefinir os anteriores conhecimentos no que concerne a indústria de salga de peixe na costa lusitana no período romano, os fragmentos encontrados ao largo dos Cortiçais revelaram ter origem na Bética, actual Andaluzia, sendo, no máximo, datáveis de meados do século I da nossa era.

O facto da parte superior das ânforas - o melhor marcador para datar esse tipo de materiais - corresponder ao mesmo período no caso das quatro a seis ânforas até agora identificadas debaixo de água nos Cortiçais, sugere que se trata da perda acidental e repentina de um conjunto de ânforas.

A tirania do acaso

Tudo começou há cerca de um ano quando um caçador submarino de Peniche, Luís Santos Jorge, ao explorar em apneia uma zona muito frequentada dos fundos marinhos locais, notou a presença de alguns fragmentos de cerâmica cuja forma e dimensões atraíram a sua atenção. Alguns dos fragmentos formavam o bojo de um grande recipiente, enquanto que outros fragmentos mostravam a forma de uma boca, com asas de argila. Ao observar os fragmentos dias mais tarde, o desenhador Jorge Carvalho, de Peniche, informou o achador de que se tratava de ânforas, recipientes associados à Antiguidade.

Os fragmentos foram posteriormente identificados pelo arqueólogo A. M. Dias Diogo que assinalou a origem bética da pasta das ânforas em questão, identificadas como pertencendo ao tipo Haltern 70.

Um detalhe crucial para o inquérito em curso, a forma dos lábios, na parte superior destes recipientes, permite datar todos os fragmentos «até» meados do século primeiro da nossa era.

Esta estrita isocronia ou simultaneidade no acto da destruição dos recipientes é um dos sinais mais comuns na análise arqueológica para assinalar uma perda acidental marcada por um congelamento de um conjunto de objectos no momento do naufrágio, e distingui-los de achados dispersos no tempo, como, por exemplo, os materiais abandonados pelos marinheiros do passado num fundeadouro, no decorrer de inúmeras estadias no mesmo local.

Esta subtil característica na datação dos lábios distingue os fragmentos anfóricos do sítio dos Cortiçais de outros achados do mesmo tipo ocorridos mais ao largo, nomeadamente no mar das Berlengas.

Achados de ânforas já não constituem novidade no mar de Peniche, onde os pescadores têm assinalado diversas ocorrências deste tipo, ao levantar as redes do mar da Berlenga[2]. Mergulhadores desportivos de Peniche como Luís Veríssimo ou Ricardo Costa, entre outros, foram os primeiros a assinalar, no fundo da ilha Berlenga, a presença de recipientes deste género, alguns dos quais figuram nas colecções do Museu Municipal de Peniche. Outras ânforas foram assinaladas por pescadores no rio Tejo[3] ou ainda perto de Alcácer do Sal, no curso médio do Sado.

Num caso, ocorrido a cinquenta milhas da costa algarvia, ao largo de Tavira e Cacela Velha, um arrastão trouxe nas suas redes duas ânforas, uma das quais de tipo Haltern 70, a forma dominante no mar da Berlenga. O achado neste caso deu-se em 320 braças de profundidade[4].

Quando as ânforas são encontradas em fundeadouros, como ocorreu na ilha Berlenga, a forma dos lábios permitiu constatar que se tratava de recipientes fabricados em períodos diferentes, ao contrário da isocronia de um naufrágio.

No entanto, tal como nos Cortiçais, a ânfora Haltern 70, fabricado na região do rio Guadalquivir, o rio de cidades como Sevilha ou Cordoba, constitui a maioria dos achados deste tipo ocorridos no mar da Berlenga, tratando-se, neste caso, de ânforas associadas ao transporte de vinho ou a produtos derivados do vinho.

A interpretação dada a estas longínquas e fugazes presenças no mar da Berlenga de outrora é a de constituírem as marcas da passagem de tripulações vindas do sudoeste ibérico que teriam consumido o conteúdo antes de abandonar os recipientes.

No caso dos Cortiçais, estaríamos em presença não de um abandono ocasional, e isolado, mas sim da perda simultânea de um conjunto. Um naufrágio, portanto.

A Biblioteca

O universo do estudo das ânforas apresenta, para o leigo que o penetra pela primeira vez, a complexidade de uma biblioteca monumental, mas de espólio incerto, e sempre em movimento, gerida por inventários em constante reajustar, no meio de um concerto de opiniões discordantes procedendo de todos os bibliotecários.

Trata-se, em suma, de um magnífico palco de complexidade aberto a muitas leituras, inúmeras perspectivas, mas para o qual os «manuais de utentes» são escassos. Algumas grandes obras de referência, incontornáveis, marcam a disciplina ao longo de pouco mais de um século. Entre os nomes mais em destaque figuram os do alemão Heinrich Dressel, epigrafista corajoso e organizado, que se interessou pelos materiais do Monte Testaccio, uma «colina» de fragmentos anfóricos, em Roma. No decurso do seu inventário das inscrições do Monte Testaccio, Dressel elaborou uma «tabela» de formas de ânforas que achava mais relevantes para a sua amostra. Nasceu assim, sem que o seu criador desse pela importância do invento, a primeira tipologia de ânforas da então ainda jovem arqueologia. Meio século mais tarde, o britânico Callender[5], ao interessar-se pelos materiais cerâmicos de período romano presentes em solo britânico, aborda uma nova faceta do estudo das ânforas. A sua tese, publicada vários anos após o trabalho ter sido completado, foi seguida de inúmeros outros trabalhos. Nuno Lamboglia, na Itália, abordava, por seu lado, o estudo de ânforas provenientes inclusive do fundo do mar, ânforas inteiras, desta vez, e, frequentemente, intactas. Outros autores se seguiram, com destaque para nomes como Mañá[6], Beltrán Lloris[7] ou Pascual, em solo ibérico, num contexto em que a curva de publicação dos trabalhos seguia e segue uma curva explosiva no plano quantitativo[8].

Tratava-se doravante de uma exponencial, colocando o leigo na posição cada vez mais difícil daquela personagem do Père Goriot, um romance de Honoré de Balzac, de 1830.,

A personagem, no meio de um banquete bem regado reunindo eruditos, artistas ou políticos, grita o seu pavor perante o número de títulos impressos: um milhão !

Uma vida humana, lembrava a personagem de Balzac, só permitia ler uns 150 000 títulos, ou seja, pouco mais da sétima parte do total dos títulos então existentes.

O universo das ânforas ainda não coloca o leitor potencial perante tais angústias, mas para lá caminha.

Felizmente, estas marés de cerâmica passada a papel foram ocasionalmente geridas por alguns pilotos de barra. Peacock e Williams, dois britânicos, figuram nesta lista preciosa dos refundidores do paradigma, e propõem ao leitor uma visão abrangente e coerente num livro de fácil acesso editado em 1986[9]. Um dos ângulos essenciais da sua proposta passa pela descrição detalhada das pastas, um caminho para a identificação da origem do local de produção de cada recipiente[10].

Mais pragmáticas ainda, ou simplesmente com um horizonte bem mais modesto, duas arqueólogas francesas, Martine Sciallano e Patrícia Sibella, pensaram nos utentes potenciais que não fossem arqueólogos, e propuseram, em 1991, um manual reeditado em 1994, muito simples de utilizar, destinado aos mergulhadores, entre outros[11].

Muitos outros títulos poderiam ser citados, dependendo a escolha do horizonte do leitor[12] ou do período ou área geográfica investigado[13].

Um dos temas mais aliciantes tem a ver com a reconfiguração das redes de produção do vinho no final do período republicano romano e início do período imperial. Pouco menos de meio século antes do início da nossa era, assiste-se a uma diminuição brutal das exportações de vinho italiano em direcção ao Ocidente[14] e a presença crescente, em solo italiano, de produtos oriundos da periferia, nomeadamente da península ibérica. Os vinhos requintados itálicos do período anterior, vão suceder vinhos ibéricos de boa qualidade e produzidos em grande quantidade. Na vasta rede comercial romana, dois pólos mantêm o seu poder de atracção: Roma, gigantesca metrópole que irá atingir um milhão de habitantes no período imperial, e os campos militares das longínquas fronteiras do norte da Europa, para os quais todos os sacrifícios são poucos.

Roma passara progressivamente a consumir os produtos oriundos dos confins ocidentais do império, incluindo o vinho e o azeite da Bética e os produtos derivados do pescado, uma indústria que ira prolongar durante vários séculos na Lusitânia.

E nessa viragem dos circuitos comerciais e de consumo que se situam os vestígios de grandes recipientes de cerâmica identificados nos Corticais.

Os primeiros fragmentos identificados por A. M. Dias Diogo provenientes deste sitio da costa sul da antiga ilha de Peniche mostram-nos que, mesmo neste caso de meia dúzia de ânforas, todas iguais e do mesmo período, nada é simples para o leitor desejoso de aprofundar a questão.

Em primeiro lugar, o nome.


Longe, num meio hostil


As ânforas dos Cortiçais examinadas em 2004 pertencem ao tipo Haltern 70, que corresponde ao número «setenta» de um conjunto de formas cerâmicas identificadas nos primeiros anos do século XX por um jovem arqueólogo alemão chamado Siegfried Loeschcke, filho de um professor universitário do Norte da Alemanha.

O Norte da Alemanha era conhecido pelos legionários do Império Romano como a terra dos confins, o Limes, fronteira perigosa e setentrional do Império.

Nesses limites setentrionais do mundo romano, o estado dispunha de uma linha de campos militares bem apetrechados para o conforto dos ocupantes. Reflexo desses pobres luxos de militares em guarnição, isolados em zonas de risco, a cerâmica escavada, desenhada e estudada por Loeschcke e os seus colaboradores cobre um vasto leque de materiais que vão desde a ânfora importada com vinho ou azeite até cerâmica erótica. Os legionários melhor equipados dispunham de esgotos. Graças a uma vastíssima rede comercial de importação de bens alimentares, podiam dar-se ao luxo de comer à maneira do sul, apesar de rodeados de névoas, de frios e de Germanos hostis.

Siegfried Loeschcke, que acabou os trabalhos em 1908, tendo-os publicado no ano seguinte[15], nunca supôs que esta sua série de descrições e desenhos pudesse vir a ser, um dia, parte da panóplia da arqueologia ibérica.

Entre as formas que isolou e desenhou, Loesckcke distingue a que corresponde ao « Typus 70», imediatamente ao lado da seguinte, o « Typus 71».

Para a arqueologia, o tipo Haltern 70 tinha acabado de nascer. Loesckcke suspeitava que se tratasse de um recipiente de origem meridional e, a título de hipótese, sugeria que fosse proveniente de Narbonne, no Sul de França.

O «nascimento» do tipo Haltern 70. Num texto publicado em 1909, Siegfried Loeschcke propõe pela primeira vez uma descrição do typus 70, uma ânfora que este arqueólogo alemão identificou entre os materiais cerâmicos deixados, cerca de dois milénios antes, pelos legionários do acampamento romano de Haltern, no antigo limes germânico (fragmento da página 256 da edição de S. Loeschcke, Munster, 1909).

Quanto ao tipo «71» de Loesckcke, os arqueólogos de hoje reconhecem nele uma «outra» forma designada como tipo «20» de Heinrich Dressel, a ânfora mais pesada jamais fabricada no período romano (Molina Vidal, 1997: 151).

Os leitores mais atentos poderão discordar e observar que, afinal, o tipo Haltern 71 também existe na literatura actual[16], interpretado neste caso como uma versão emergente e precoce da pesada Dressel 20, esta última destinada ao transporte de azeite e de origem bética, como a Haltern 70 (Molina Vidal 1997: 145).

Seja como for, o exemplo vale para mostrar que, já em 1908, o próprio Loeschcke tinha problemas com o tamanho e dispersão da «biblioteca», já que os trabalhos de Heinrich Dressel tinham, nesta altura, sido publicados dez anos antes. Havia, portanto, maneira, em 1908, de observar e estudar no papel a forma geral da ânfora que Dressel identificou com o número «20».

Para os curiosos interessados em ler alemão na sua caligrafia clássica, gótica, uma cópia do precioso texto de Loeschcke (editado em 1909) sobre as cerâmicas de Haltern existe em Belém, a escassas dezenas de metros do Rio Tejo, na Biblioteca do Instituto Português de Arqueologia.

Alguns autores posteriores a Loeschcke trataram de diversas maneiras a forma correspondendo à Haltern 70. O tema da Haltern 70 ganhou firmeza nos anos 1970 com a descoberta, e posterior escavação, de um naufrágio do século primeiro da nossa era na costa Sudoeste francesa, no Mediterrâneo. Desta vez, neste naufrágio conhecido por Port Vendres II, foi posta em evidência a origem bética dos materiais[17], e lançado um debate que iria durante décadas, e ainda dura, sobre o conteúdo das ditas ânforas Haltern 70.

A teoria que vinga fala de vinho, ou melhor, de derivados do vinho, um conteúdo identificado pelas inscrições pintadas encontradas nas ânforas deste tipo no barco de Port Vendres II. Lia-se, neste caso, um conjunto de oito caracteres separados por um traço:
def/excel,

conjunto que foi interpretado pelos epigrafistas como

def(rutum)/ excel(lens),

ou seja, um «vinho cozido, de primeira qualidade»[18].

O debate complicou-se posteriormente, levando os arqueólogos e os epigrafistas envolvidos a debater as diversas formas de derivados do vinho produzidas pelos viticultores da Bética[19] e os respectivos nomes, surgindo por vezes o defrutum sob a forma sapa, um sinónimo[20]. Aos conteúdos anteriores juntou-se depois uma possível utilização da Haltern 70 andaluza para transporte de azeitonas, conservadas, neste caso, num dos líquidos derivados do vinho[21].

Pode hoje concluir-se que a associação da Haltern 70 ao transporte de vinho ou de derivados do vinho é consensual, enquanto que outros usos são ainda assunto de debate. Todos admitem uma origem andaluza.

Quanto ao período de fabrico, começa em meados do século primeiro antes da nossa era, e termina cerca do ano 70 da nossa era, pouco mais de um século, ao todo.

Os mais informados irão lembrar que existem indícios da presença de Haltern 70 antes de meados do século primeiro antes da nossa era: um único fragmento deste tipo foi identificado por André Tchernia, autor de uma obra magistral sobre o vinho na Antiguidade. O fragmento em questão foi encontrado nos vestígios de um grande cargueiro do período republicano, naufragado cerca do ano de 65 antes da nossa era, no local chamado Madrague de Giens, na costa francesa da Provença[22].

O tema é comentado pela arqueóloga Francoise Mayet, co-autora dos trabalhos em Port-Vendres II, que assinala a importância deste único fragmento[23] num debate sobre as ânforas produzidas há dois milénios. A desproporção entre o único fragmento, ainda por publicar, e as dezenas de milhares de Haltern 70 provavelmente produzidas ilustra o peso das novas descobertas numa disciplina cuja matéria base ainda está em laboração.

Neste oceano por desvendar, o mar de Peniche figura como um jardim exótico, aberto à história de uma pequena embarcação, forçosamente anónima, transportando –talvez - algumas dezenas de ânforas, contendo – talvez - um vinho andaluz, a caminho dos mercados da costa do oeste lusitano.

O mais intrigante deste micro universo que nos espera é o horizonte proposto pelo investigador catalão César Carreras Monfort[24] que se debruçou longamente sobre as presenças ibéricas de período romano em solo britânico e no norte da Europa.

A leitura que sobressai dos trabalhos de Carreras Monfort, bem como de outros investigadores contemporâneos, propõe-nos uma visão de conjunto na qual as produções ibéricas, quer de vinho, quer de azeite, seguiam pela rota continental dos vales do Ródano e do Reno até atingir os acampamentos do longínquo Limes, enquanto que uma rota alternativa, marítima e directa, muito mais rentável no plano económico, mas menos ligada aos monopólios das redes estatais, seguia pelo Atlântico fora, cortando caminho através do Golfo da Biscaia, até atingir as águas do Canal da Mancha, a partir do Finisterra da Galiza de hoje.

Uma tese recente, da autoria de Rui Morais, investigador da Universidade do Minho, faz o recenseamento dessas presenças de Haltern 70 ao longo do Noroeste ibérico. É neste leque difuso, e aliciante, que se inscrevem os fragmentos até agora descobertos nos Cortiçais, bem como os que irão ser postos à luz do dia, durante as próximas semanas.

Quanto à complexidade, em geral, do tema genérico das ânforas, a constante evolução dos conceitos, a avalanche ininterrupta de reavaliações, discordâncias ou distanciamentos entre os pontos de vista dos peritos reflectidos nas publicações disponíveis, um psicólogo dos processos cognitivos, Claude Bastien, num livro magistral intitulado Les connaissances de l’enfant à l’adulte. Organisation et mise en oeuvre, fornece algumas pistas para integrar a aparente cacofonia num universo por um lado muito humano, por outro lado muito operacional, o dos «peritos».


Pilotos da barra


Uma das fontes utilizadas por Claude Bastien para a sua abordagem dos processos utilizados pelos peritos em geral é uma experiência feita com seis médicos especialistas. A experiência tinha como objectivo sondar a maneira como peritos de um ramo determinado, neste caso a medicina, tratavam a informação que lhes era submetida, neste caso relatórios médicos.

Tratava-se, portanto, de testar a pertinência, para esses peritos, de uma representação modelizada da disciplina.

Os resultados fizeram surgir três conclusões essenciais:

1- A correspondência entre as opiniões dos peritos e os constituintes do modelo (ou conjunto de paradigmas da profissão. N. do tradutor.)

2- Existe uma grande diferença de opiniões entre diversos peritos sobre um mesmo relatório (compte-rendu).

3- Para os peritos, as ligações entre conceitos têm muito mais a ver com uma representação operatória (opératoire) do que com uma representação semântica[25].

Ou seja, cada perito submetido a um «caso» por analisar, activa imediatamente zonas do seu conhecimento operacional e não o conjunto de um conhecimento estruturado que seria, neste caso, a própria «visão» da disciplina.

Bastien cita outras experiências em campos tão variados como militares pilotos de caça durante a preparação de voos a baixa altitude, ou ainda técnicos encarregues da manutenção de sistemas nucleares.

Aplicada à arqueologia em geral, e às ânforas, em particular, a leitura de Claude Bastien torna fluido para o leigo o subtil concerto de vozes discordantes da «Biblioteca».

Em cada caso, observa Claude Bastien a propósito dos «contextos funcionais» dos peritos em geral, os chamados «pontos de vista», «a racionalidade que preside é a da acção e não a das relações semânticas que organizam o conhecimento geral»[26].

Ou seja, cada perito vê o mundo sob o prisma da sua própria relação operacional individual. Pilotos, radiologistas ou arqueólogos, todos saberão, portanto, identificar no ecrã radar, na placa de raios X, ou num fragmento milenar, um alvo, uma patologia, um tipo ou uma forma, de um modo inatingível para um leigo, e todos poderão, então, discordar do universo estruturado onde cada um desses peritos integra o objecto assim destacado.

Suspeito de que as ânforas estilhaçadas pelo mar dos Cortiçais não irão escapar a tais regras, mas, para já, vamos mergulhar à procura de mais dados.

Quanto às «relações semânticas», essas podem esperar pelo próximo dia 16 de Maio, depois de terminada a campanha.


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[1] Blot (J-Y), Diogo (A. M. Dias), Jorge (L. Santos), Venâncio (R.), Russo (J.), Antunes (C.), Fonseca (L.), Costa (R.), Gonçalves (P.): Sítio dos Cortiçais, costa Sul de Peniche. Missões realizadas em 2004. CNANS, 3 de Fevereiro de 2005. Uma notícia contextualizada foi publicada entretanto (Venâncio, R. (2004): Investigações arqueológicas na costa de Peniche: apontamentos acerca da presença romana. Jornal A Voz do Mar, Peniche, nº1149: 1,9).

[2] Diogo, A. Dias (1999): Ânforas provenientes de achados marítimos na costa portuguesa. Revista Portuguesa de Arqueologia (IPA), volume 2, número 1: 235-248.

Diogo, A.M. Dias, Trindade, L., Venâncio, R, (no prelo). Ânforas provenientes de achados subaquáticos ao largo da Berlenga.1º Congresso de Arqueologia da Região Oeste, Bombarral, Novembro de 2001.

[3] Diogo,A.M.; Alves, F.J.S. (1988-1989): Ânforas provenientes do meio fluvial nas imediacões de Vila Franca de Xira e de Alcácer do Sal. O Arqueólogo Português. Lisboa. Série IV, 6/7,p.227-240.

[4] Arruda, A.M.; Frade, I.; Travassos, J. (1987): Duas ânforas romanas de Cacela (Vila Real de Santo António). Conimbriga. Coimbra, 26: 125-131. Referência citada por A. Dias Diogo (Diogo, 1999: 236).

[5] Callender, M. H. (1965): Roman amphorae with index of stamps. London.

[6] Mañá, J.M. (1951): Sobre la tipologia de ánforas púnicas. CASE VI, Cartagena. Como é frequente nesta disciplina, as formas definidas neste trabalho foram mais tarde reavaliadas em trabalhos de outros autores.

[7] Beltrán Lloris, M. (1970): Las ánforas romanas en España. Monografías Arqueológicas, VII. Zaragoza.

[8] O fenómeno é evidenciado na curva das publicações recentes relativas a uma única forma (ânfora Dressel 20). Os dados e o gráfico da curva podem ser consultados na Internet, na tese de José Remesal Rodríguez (1999): Una aproximació a la història de la investigació sobre ànfores oleàries bétiques Dressel 20 i Dressel 23. http://sapiens.ya.com/madoz10/DOC20CUR.htm

[9] Peacock, D.P.S.; Williams, D.F. (1986): Amphorae and the Roman economy, an introductory guide. London, New York.

[10] Peacock, D.P.S.; Williams, D.F. (1977): Roman amphorae: Typology, fabric, origins. Méthodes classiques et méthodes formelles dans l’étude des amphores. Collection de l’École Française de Rome, 32 : 261-278.

[11] Sciallano, M.; Sibella, P. (1991): Amphores. Comment les identifier?. Edisud. Aix-en-Provence. 131 páginas.

[12] Para uma panorâmica dos dados deste tipo provenientes de sítios submarinos (navios afundados), pode ler-se na Internet o texto do artigo de J-P Morel: Morel, J.-P. (1998): Le commerce à l’époque hellénistique et romaine et les enseignements des épaves. A versão original deste artigo de J-P Morel foi editada por G. Volpe em: Archeologia Subacquea. Como Opera L’Archeologo Storie Dalle Acque. VIII Ciclo di Lezioni sulla Ricerca applicata in Archeologia Certosa di Pontignano (Siena). Edizioni All’Insegna del Giglio. Firenze: 485-529.

[13] Para Portugal, uma primeira referência ao tema dos achados marítimos de ânforas é dada por Guilherme Cardoso (Cardoso, 1978: Ânforas romanas do Museu do Mar (Cascais). Conimbriga, 17: 63-78 Fabião, C. (1998): O vinho na Lusitânia: reflexões em torno de um problema arqueológico. Revista Portuguesa de Arqueologia, Vol.1, nº1: 169-198.

[14] Tchernia, A. (1986): Le vin de l’Italie romaine. Essai d’histoire économique d’après les amphores. Ecole Française de Rome. Palais Farnèse. Roma: 140.
Uma discussão deste tema para o território lusitano figura num capítulo intitulado: O declínio flaviano do grande comércio vínico: o triunfo do local em: Fabião, C. (1998): O vinho na Lusitânia: reflexões em torno de um problema arqueológico. Revista Portuguesa de Arqueologia, Vol.1, nº1: 183-189.

[15] Loeschke, S. (1909): Keramische Funde in Haltern, Mitteilungen der Altertumskommission für Westfalen, 5: 101-322, Tafeln X-XXXIII.

[16] Molina Vidal, J. (1997): La dinámica comercial romana entre Italia e Hispania Citerior (siglos II a.C.-II d.C.). Universidade de Alicante: 145.

[17] Colls, D. ; Etienne, R. ; Lequément, R. ; Liou, B. ; Mayet, F. (1977): L’épave Port-Vendres II et le commerce de la Bétique à l’époque de Claude. Archaeonautica, 1, Paris.

[18] Etienne, R. ; Mayet, F. (2000): Le Vin Hispanique. De Boccard. Paris : 82

[19] Parker, A. J. ; Price, J. (1981): Spanish exports of the Claudian Period: the significance of the Port Vendres II wreck reconsidered. International Journal of Nautical Archaeology, 10.3: 223-224.

[20] Tchernia, A., 1986: 141

[21] Lequément, R. ; Massy, J-L (1980) : Importation à Soissons d’olives au defrutum, in Cahiers archéologiques de Picardie, 7 : 263-266, citado por Tchernia, 1986 : 141.

[22] Brun, J.-P. (2004): Archéologie du vin et de l’huile.De la préhistoire à l’époque héllenistique. Errance. Paris: 198.

[23] Etienne, Mayet (2000): 86

[24] César Carreras Monfort: Britannia and the imports of Baetican and Lusitanian amphorae. Texto disponível na Internet em formato .pdf.
Um outro texto do mesmo autor, disponível no mesmo suporte, diz directamente respeito ao nosso tema: Carreras Monfort: Producción de Haltren 70 y Dressel 7-11 en las inmediaciones del Lacus Ligustinus (Las Marismas, Bajo Guadalquivir): http://ceipac.ub.edu/biblio/Data/A/0262.pdf

[25] Bastien, C. (1997): Les connaissances de l’enfant à l’adulte. Organisation et Mise en œuvre. Armand Colin. Paris : 33 (citação original em francês). Agradeço a A. L. Pinheiro por me ter introduzido a este texto e ao universo subjacente.

[26] Bastien, 1997: 35.


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